Por que usar luz vermelha na sua festa? Sobre sensibilidade espectral e adaptação ao escuro

Imagine a seguinte situação: você esperou a semana inteira para que o final de semana chegasse, juntou seu dinheiro, pagou o ingresso para uma festa com músicas que você adora e combinou com colegas de curtirem juntos a balada merecida. Mas quando vocês entram na festa está tudo escuro, não conseguem enxergar nada. Mas com o passar dos minutos, você percebe que começa a ver o contorno e forma das pessoas e a perceber objetos a sua volta. Após cerca de meia hora você consegue enxergar bem melhor, inclusive o crush que estava bem perto, mas você não o tinha reconhecido. 

Isso acontece porque nossa visão possui a habilidade de se adaptar ao escuro em locais pouco iluminados tornando-se mais sensível à luz por meio de células fotossensíveis localizadas na retina: os cones e os bastonetes. Mas esse processo leva um tempo para ocorrer, e vamos explicar o porquê!

Para conseguirmos entender o que acontece quando há pouca luz, é importante compreender como ocorre nossa visão em situações bem iluminadas. Quando olhamos para um objeto (ou para o nosso crush S2) durante o dia, a luz refletida por ele entra em nossos olhos através da pupila, e ativa nossos cones e bastonetes (Figura 1). 

Figura 1. Estrutura do olho humano com identificação de cones e bastonetes. Retirado de: portalenfermagem.com.

Os segmentos externos desses fotorreceptores contêm pigmentos visuais que sofrem uma alteração no formato espacial de suas moléculas ao interagirem com a luz em um processo químico em cadeia chamado isomerização. A isomerização faz com que os receptores sejam ativados e assim a energia eletromagnética da luz é transformada em energia eletroquímica, que é então codificada pelo nosso cérebro, permitindo a percepção visual.

Mas… Essa explicação ficou abstrata demais! Vamos explicar melhor esse processo para conseguirmos compreender melhor a adaptação ao escuro…

Em um ambiente escuro, nossa visão leva cerca de trinta minutos para se adaptar e alcançar o ápice de sensibilidade à quantidade de luz disponível. No texto “Como apreciar um céu estrelado?” e no texto “Por que os piratas usavam tapa olho?”, ambos publicados aqui no Eu Percebo, você encontrará informações sobre adaptação ao escuro. Mas por que esse processo não ocorre instantaneamente?

Como já vimos em linhas gerais, quando há luz, o fotopigmento muda de forma. Esse pigmento visual se chama rodopsina, uma substância química formada pela opsina, que é uma proteína alongada, e por uma substância que se “gruda” a ela chamada retinal, que é um componente sensível à luz. A luz faz com que o retinal mude de forma (a isomerização) e dá início a um processo chamado descoramento: a molécula se estica e, ao se esticar, se separa da opsina. Como a isomerização acontece em cadeia, são milhares de retinais se separando das opsinas e ativando os receptores! 

No entanto, para conseguirmos enxergar no escuro, é importante garantir o máximo de sensibilidade à luz, ou seja, o retinal deve estar ligado à opsina. Quando a luz pára de chegar ao olho, inicia-se o processo de regeneração do pigmento visual: a rodopsina se forma novamente quando o retinal volta à sua forma original e se liga novamente à opsina. Lembre-se dessas duas palavras: escuridão e regeneração. Quanto mais tempo no escuro, menos descoramento e mais regeneração. É justamente isso que vai permitir a adaptação da nossa visão ao ambiente com pouca luz. 

Notamos que após alguns minutos no escuro, nossa capacidade para enxergar já começa a melhorar sutilmente, mas ela nem se compara ao nosso ápice de sensibilidade! Nos cones, a rodopsina leva cerca de seis minutos para voltar ao seu formato original, mas ela não é tão sensível à luz. Já nos bastonetes, que possuem uma sensibilidade bem maior à luz, esse processo é um pouco mais lento e a regeneração demora cerca de trinta minutos. 

Portanto, quando chegamos na festa, não leva muito tempo para conseguirmos notar que há coisas ao nosso redor e pessoas se deslocando de um lugar para outro, mas só conseguimos reconhecer o crush após a regeneração completa da rodopsina nos bastonetes. Por isso, podemos dizer que nossa visão no escuro utiliza essencialmente nossos bastonetes – os cones não conseguem atingir sensibilidade suficiente para nos fazer diferenciar nosso crush de uma pessoa aleatória em um ambiente pouco iluminado!

E o que a luz vermelha tem a ver com tudo isso? Não precisaríamos passar quase meia hora sentindo o desconforto de enxergar tão mal caso os produtores da festa tivessem fornecido alguma fonte de luz na entrada. Mas como vimos anteriormente, as luzes fazem com que ocorra a isomerização dos pigmentos visuais, atrapalhando nossa adaptação ao escuro, e teríamos o mesmo problema ao chegar na escura pista de dança. No entanto, é possível garantir a adaptação ao escuro sem inserir todos os convidados da festa em uma escuridão desnorteadora utilizando… luzes vermelhas!

Figura 2. Foto de uma lâmpada de luz vermelha. Imagem apenas ilustrativa, uma vez que lâmpadas incandescentes de tungstênio não emitem apenas ondas longas (percebidas como vermelho). Photo by Terry Vlisidis on Unsplash.

A luz vermelha pode auxiliar no processo de adaptação ao escuro devido à sensibilidade espectral dos fotorreceptores. Isso significa dizer que cones e bastonetes possuem sensibilidades maiores a comprimentos de ondas específicos, que determinam a cor da luz. 

Os cones são responsáveis pela nossa percepção de cor, e possuem três pigmentos visuais: um que absorve melhor as ondas curtas (S), com absorção máxima a luzes comprimento de onda de 419 nm (nanômetros; que corresponde à uma cor azul-violeta); um para as ondas médias (M), com pico de absorção a luzes de comprimento de onda 531 nm (que nós percebemos como verde) e um para as ondas longas (L), de pico de absorção em 558 nm (verde-amarelado). Já os bastonetes absorvem melhor as ondas de comprimento de onda próximo de 500nm (uma cor verde-azulada). A Figura 3 mostra a absorção dos pigmentos ao longo do espectro de luz visível. 

Figura 3. Espectro de absorção do pigmento visual dos bastonetes (R) e dos pigmentos dos cones de comprimento de onda curto (S), médio (M) e longo (L). O eixo horizontal representa o comprimento de ondas luminosas medido em nanômetros; e o eixo vertical representa a proporção relativa de luz absorvida. Retirado de: Goldstein, E. B. (2014). Sensation and perception (9ª ed). Belmond, CA: Wadsworth. CengageLearning.

A Figura 3 ainda evidencia que a luz vermelha (entre 600-650 nm), diferente de outros comprimentos de onda mais curtos, não provoca o descoramento dos pigmentos visuais dos bastonetes. (Só lembrando: o descoramento é a separação da rodopsina em retinal + opsina!). Então, um ambiente iluminado com luz vermelha permite que a rodopsina nos bastonetes possa continuar se regenerando, tal como ocorre na escuridão. Se colocamos luzes vermelhas na entrada da festa, evitamos que a luz provoque a isomerização dos pigmentos visuais de bastonetes, fazendo com que nossos olhos se adaptem como se estivessem no escuro, e assim, quando entramos na pista de dança com pouca luz, os bastonetes estão regenerados e adaptados! E isso é ótimo, pois os bastonetes possuem maior sensibilidade à luz que os cones.

Foram realizados diversos experimentos psicofísicos para verificar a eficácia da luz vermelha no processo de adaptação ao escuro, e alguns deles se encontram na bibliografia deste texto (infelizmente são textos escritos em inglês).                     

Agora que você já entendeu todo o processo de adaptação do nosso olho ao escuro, na próxima festa que você for, sugira ao produtor colocar luzes vermelhas no hall de entrada. Além de proporcionar um clima interessante para a festa, essa dica garantirá uma melhor adaptação dos seus bastonetes e, consequentemente, um efeito de adaptação ao escuro. Assim, ficará mais fácil achar aquele crush que você estava esperando, encontrar sua amiga que foi ao banheiro ou encontrar o caminho do bar!

Referências

Goldstein, E. B. (2014). Sensation and perception (9ª ed). Belmond, CA: Wadsworth. Cengage Learning.

Hecht, S. & Hsia, Y. (1945). Dark adaptation following light adaptation to red and white lights. Journal of the Optical Society of America, 35(4) 261-267. https://doi.org/10.1364/JOSA.35.000261

Miles, W. R. (1953). Effectiveness of red light on dark adaptation.  Journal of the Optical Society of America, 43(6) 425-441. https://doi.org/10.1364/josa.43.000435

Smith, S., Morris, A. & Dimmick, F. (1955). Effects of exposure to various red lights upon subsequent dark adaptation measured by the method of constant stimuli. Journal of the Optical Society of America, 45(7) 502-206. https://doi.org/10.1364/JOSA.45.000502

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Imagem da capa do post: Imagem de A. L. por Unsplash.


Sobre as autoras

Carolina Saggioro Sobrinho. Graduanda de Psicologia pela UnB, interessada em Psicologia Clínica. Gosta de compreender os fenômenos bonitos do mundo por meio da ciência e da poesia. 

Cibele Gugel Silva. Graduanda de Psicologia pela UnB, atualmente trabalha com pacientes psiquiátricos, ama muito a clínica e a pesquisa. Espera um dia tornar-se professora. Gosta de tocar e ouvir música e de ler no sol.

Miriã Carvalho. Graduanda de Psicologia pela UnB, uma entusiasta de projetos e conhecimentos diferentes. Atua com psicologia organizacional, gosta muito de trabalhar com pesquisa e aproveitar uma boa leitura acompanhada do seu chimarrão.

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Sobrinho, C. S., Silva, C. G., & Carvalho, M. (2021, 7 de novembro). Por que usar luz vermelha na sua festa? Sobre sensibilidade espectral e adaptação ao escuro. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/11/07/por-que-usar-luz-vermelha-na-sua-festa-sobre-sensibilidade-espectral-e-adaptacao-ao-escuro/

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