Por que os piratas usavam tapa olho? Uma análise a partir do processo de adaptação ao escuro

Como você descreveria um pirata? É bem provável que na sua descrição alguns adereços específicos sejam abordados, como um chapéu, um gancho nas mãos, uma perna de pau e um tapa olho. Você já se perguntou por que o pirata usava um tapa olho? Muitos acreditam que o uso desse acessório decorre da ausência ou dano ao olho do pirata. Existe, porém, uma hipótese proposta pelo pesquisador da Pacific University de Oregon, Jim Sheddy, em uma entrevista ao The Wall Street Journal em 2013, de que o tapa olho era utilizado como um artifício para melhorar a visão noturna [2].

Como os piratas se movimentavam constantemente entre o lado interno, com baixa luminosidade, e externo, com alta luminosidade, do navio, o tapa olho seria utilizado para manter um olho adaptado aos ambientes mais escuros e facilitar a visão nesses lugares. Assim, durante o dia, ao sair do convés e entrar no porão do navio, por exemplo, seria necessário apenas retirar o tapa olho para ter uma boa visão no escuro. Não existem fontes históricas que comprovem essa hipótese, no entanto, essa teoria faz sentido se analisada a partir do processo de adaptação ao escuro da visão humana [3].

Os olhos de animais vertebrados, como os seres humanos, são constituídos, dentre outras estruturas, por uma camada fotossensível denominada retina e pelo cristalino. O cristalino é uma estrutura responsável por focalizar a imagem na retina. A retina é composta por células nervosas e fotorreceptores que absorvem a energia luminosa do ambiente e a transforma em atividade neural, processo denominado de transdução sensorial (Figura 1) [4].

Figura 1. Estruturas que compõem o olho humano. Fonte da imagem: todoestudo.com.br.

Na retina existem dois tipos de fotorreceptores: os bastonetes e os cones, assim denominados devido a sua forma cilíndrica e cônica, respectivamente (Figura 2). No olho humano existem cerca 130 milhões de bastonetes e oito milhões de cones. Os bastonetes estão concentrados na periferia da retina, enquanto os cones concentram-se na fóvea, uma depressão na retina com 1 mm de diâmetro (Figura 3). O segmento externo, tanto dos bastonetes como dos cones, possui um pigmento que absorve a luz, chamado rodopsina [4].

Figura 2. Fotorreceptores da retina. A figura (a) mostra uma eletromicrografia dos cones e bastonetes (rod, em inglês), as células fotorreceptoras da retina. A figura (b) mostra o segmento interno (inner segment) e externo (outer segment) dos cones e bastonetes. Fonte da imagem: Goldstein (2014).
Figura 3. Concentração dos cones (linha em vermelho) e bastonetes (linha em azul) na retina. O olho à esquerda indica a localização, em graus, em relação a fóvea. Esses ângulos são repetidos no eixo horizontal do gráfico a direita. Note que os cones concentram-se na fóvea (ângulo 0°), enquanto os bastonetes estão distribuídos na periferia da retina. Figura retirada de Goldstein (2014).

A visão realizada majoritariamente com os cones é denominada visão fotópica e caracteriza-se pela visão de cores, de alta acuidade e baixa sensibilidade. Por outro lado, a visão realizada com os bastonetes, denominada visão escotópica, é caracterizada pela baixa acuidade e alta sensibilidade à luz [4].

Existem algumas situações em que podemos experienciar os efeitos específicos ocasionados pela visão levada a cabo por bastonetes ou cones. Por exemplo, provavelmente você já vivenciou uma situação em que passou abruptamente de um ambiente muito iluminado para um com baixa iluminação. Recorde que a princípio você deve ter sentido dificuldade para enxergar no ambiente pouco iluminado. Após alguns minutos, porém, alguns aspectos do ambiente, antes imperceptíveis, se tornaram visíveis. Esse processo, em que a nossa sensibilidade visual aumenta gradativamente em um ambiente pouco iluminado, denomina-se adaptação ao escuro. É comum também, quando saímos de um ambiente pouco iluminado para um muito iluminado, ou quando acordamos e logo ligamos a luz, sentimos um incômodo nos olhos. Quando isso ocorre tendemos a fechar os olhos e tentar abrir gradativamente até nos adaptarmos à claridade. Esse processo é denominado adaptação à luz e ocorre devido à alta sensibilidade visual causada pela longa permanência em um ambiente escuro [1].

No que se refere à adaptação ao escuro, os cones se adaptam mais rapidamente à escuridão, levando entre 5 e 10 minutos. Já os bastonetes levam entre 20 e 30 minutos para se adaptarem ao escuro, porém apresentam mais sensibilidade do que os cones (Figura 4) [5].

Figura 4. Curva de adaptação ao escuro de cones e bastonetes. Observe que os cones atingem o ponto máximo de adaptação ao escuro em menos de 10 minutos (linha verde) enquanto os bastonetes atingem o ponto máximo em cerca de 20 minutos (linha roxa). A linha vermelha representa a curva de adaptação ao escuro geral, que leva em consideração a adaptação tanto de cones quanto de bastonetes. Figura retirada de Goldstein (2014).

A essa altura você deve estar se questionando por que esse fenômeno acontece. A adaptação ao escuro decorre de uma alteração química nos bastonetes e nos cones. Essas células contêm um fotopigmento responsável pela absorção de luz chamado rodopsina, uma substância química instável que, ao entrar em contato com a luz, sofre uma alteração conformacional (processo denominado isomerização) e desencadeia uma cascata de processos celulares que resulta na despolarização do fotorreceptor. A rodopsina se regenera na escuridão, sendo tal processo fotoquímico fundamental à adaptação ao escuro [5].

Ao responder a luz e se despolarizar, a rodopsina forma o retinal, um pigmento amarelo encontrado nos fotorreceptores, e a opsina, uma proteína incolor. Isto resulta em uma descoloração das células da retina (Figura 5). Ainda, o retinal, por sua vez, se converte no retinol, uma forma de vitamina A. Quando o olho é mantido no escuro, a vitamina A se une a opsina para reconstruir a rodopsina. A partir deste processo, o equilíbrio entre a decomposição da rodopsina pela exposição à luz e a sua regeneração é estabelecido.

Figura 5. As figuras (a), (b), (c) mostram a descoloração da rodopsina após a exposição à luz. Retirado de Goldstein (2014).

O cientista William Rushton (1901-1980) propôs que a rodopsina é disputada entre os cones e bastonetes para a regeneração. Ele realizou um experimento para testar essa rivalidade entre as células, utilizando como base uma região da retina que continha uma quantidade semelhante de cones e bastonetes. Foram utilizadas luzes vermelhas e azuis (por serem cores extremas no espectro de luz visível) e foi possível visualizar que em ambas as luzes os bastonetes se regeneram mais devagar e quando expostos à luz vermelha (a qual os cones têm maior atratividade) a regeneração foi ainda mais lenta em comparação aos cones. Ou seja, há uma disputa entre os cones e bastonetes pela rodopsina e os cones se regeneram mais rápido [3].

Ao compreender o processo de adaptação ao escuro poderíamos chegar à conclusão de que o uso do tapa olho pelo pirata seria um bom artifício para melhorar a visão. De fato, o uso do tapa olho permite que um olho se mantenha adaptado ao escuro, logo mais sensível a baixa iluminação, enquanto o outro olho está adaptado à luz. No entanto, o uso deste acessório pode não ser tão benéfico por prejudicar a visão em profundidade. A convergência da imagem dos dois olhos no cérebro, chamada de visão estereoscópica, proporciona melhor visão de profundidade. Além disso, a convergência, o movimento de rotação dos olhos para o lado interno para focar a imagem, fornece informação sobre a distância de objetos próximos [6]. Mas deixamos o assunto sobre percepção de profundidade para um próximo texto.

Referências

[1] Goldstein, E. B. (2014). The beginnings of perception. In E.B. Goldstein, Sensation and perception, 9a ed, (21-50). Belmond, CA: Wadsworth. Cengage Learning.

[2] Harvey, I. (2017, fevereiro 2). Pirates wore eye patches to adjust to the contrasting light above & below deck. Recuperado de: https://www.thevintagenews.com/2017/02/02/pirates-wore-eye-patches-to-adjust-to-the-contrasting-light-above-and-below-deck/

[3] Rushton, W. A. (1968). Rod/cone rivalry in pigment regeneration. The Journal of Physiology 198(1), 219-236. https://doi.org/10.1113/jphysiol.1968.sp008603

[4] Schiffman, H.R. (2005). O sistema visual. In H.R. Schiffman, Sensação e Percepção, 5a ed, (34-64). Rio de Janeiro: LCT.

[5] Schiffman, H.R. (2005). Funções e fenômenos visuais fundamentais. In H.R. Schiffman, Sensação e Percepção, 5a ed,(65-83). Rio de Janeiro: LCT.

[6] Schiffman, H.R. (2005). A percepção do espaço: Visão monocular e visão binocular. In H.R. Schiffman, Sensação e Percepção, 5a ed, (65-83). Rio de Janeiro: LCT.

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Fonte da imagem da capa do post: theuijunkie.com.


Sobre as autoras

Andressa Rios Lopes. Graduanda do curso de Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Tem grande interesse pela área clínica. Gosta de ler, apreciar a natureza e escutar o ronronar dos seus dois gatos.

Raíssa de Almeida Ramos Maia da Rocha. Graduanda do curso de Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Já trabalhou com o tema “Violência intrafamiliar motivada por homofobia” e participou do projeto de extensão de horta comunitária no Setor Comercial Sul.

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Lopes, A. R., & da Rocha, R. A. R. M. .(2020, 21 de abril). Por que os piratas usavam tapa olho? Uma análise a partir do processo de adaptação ao escuro [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2020/04/21/por-que-os-piratas-usavam-tapa-olho-uma-analise-a-partir-do-processo-de-adaptacao-ao-escuro/

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