Percepção multissensorial e a busca pelo café perfeito

Nos últimos tempos despertou-se um enorme interesse da população por um tipo de café muito mais selecionado, com um enorme potencial de trazer diferentes aromas e sabores na xícara: o café especial. Logo o café, que era algo simples, do dia a dia, ou uma dose de energia, tornou-se um hobby para muitas pessoas. Isso foi acompanhado de um trabalho de aprofundamento e capacitação das cafeterias de todo o mundo, que agora buscam cada vez mais educar o público sobre o que são cafés especiais, como também se importam em cada mínimo detalhe na hora do preparo, em busca do café perfeito!

Figura 1. Pirâmide que demonstra a classificação do café a partir da quantidade de defeitos. Retirado de: estacao14.com.br.

E como guia de qualidade, a Specialty Coffee Association (SCA) traz diversos parâmetros que vão nos ajudar a entender como percebemos o sabores presentes no nosso café, além de trazer uma série de recomendações sobre o preparo, protocolos de prova, especificações de água, e diversos outros assuntos que envolvem a qualidade do café. 

Uma das contribuições mais famosas da SCA é a roda de sabores e aromas do café, a qual podemos ver logo abaixo. Ela funciona como um guia básico de análise sensorial do café, onde avaliamos as notas sensoriais presentes na bebida. Por exemplo, o café que estou tomando é frutado? Sim. Que tipo de fruta? Vermelha? Amarela? E, assim, chegamos a uma fruta específica.

Figura 2. Roda de sabores e aromas do café feita pela SCA. Retirado de: blog.veroo.com.br.

Mas como eu posso sentir aromas frutados, florais e doces no meu café? Café não é amargo? Cafés especiais são cafés classificados com mais de 80 pontos em uma escala de classificação da SCA, e é uma sementinha que guarda diversos ácidos, açúcares, proteínas e muitos outros compostos que a partir da torra vão se transformar, se degradar, se unir, e trazer à tona a uma infinidade de sabores. Um exemplo é a Beta-damascenona, uma molécula presente em alguns cafés que vai ser responsável pelos aromas florais, além da percepção de um corpo amanteigado.

Figura 3. Estrutura molecular da Beta-damascenona. Retirado de: researchgate.net.

Sendo assim, quando tomamos uma xícara de café, os receptores na nossa língua vão enviar informações para o nosso cérebro, que as decodifica e as transforma em gostos básicos: doce, salgado, ácido, amargo e umami. Mas não para por aí! No café torrado, apesar de sentirmos uma doçura natural, não temos quantidades de açúcares, como frutoses ou sacaroses, suficientes para ativar os receptores de doçura na nossa língua. A percepção de doçura no café se dá principalmente pelos aromas doces que aparecem na xícara e que a cada gole percorrem nosso aparelho retronasal, um canal que liga a boca ao nariz e, assim, esses voláteis chegam ao nosso sistema olfativo e conseguimos dar nome, nota e sentir prazer ao tomar uma xícara de café. A partir disso, temos uma experiência completa de sabor e, muitas vezes, nem percebendo o amargor ali presente por conta da cafeína e dos ácidos clorogênicos, que são tipicamente amargos.

Figura 4. Ilustração das vias ortonasal e retronasal por onde sentimos os aromas da bebida. Retirado de: perfectdailygrind.com.

Desde que comecei no mundo do barismo, o maior desafio de cada dia se tornou chegar ao café perfeito, balanceado, com baixo amargor, equilíbrio entre doçura, acidez, um corpo de textura e peso agradáveis e com um gostinho longo e prazeroso que fica na boca ser longo e prazeroso… fora outras características incríveis. Mas por onde começamos?

É claro que, como barista, as primeiras coisas que me vêm à cabeça são as diversas variáveis que trabalhamos na hora da extração, moagem, temperatura, estrutura da água, maquinário, variedade do café, processamento e torra. Mas o que diversos cientistas mostram é que a experiência de sabor vai muito além do paladar e do olfato, ela é uma experiência multissensorial e cognitiva.

Fabiana Mesquita de Carvalho, neurocientista brasileira e doutora em Psicobiologia, conduziu diversos estudos na área de percepção de cafés especiais, sobre como o formato, a textura e a cor da xícara podem influenciar na percepção de cafés, tanto em pessoas leigas, quanto em profissionais de prova. Em alguns estudos, Fabiana trabalhou juntamente com Charles Spence, um pesquisador referência da área e coordenador do Laboratório de Pesquisa Crossmodal da Universidade de Oxford, que já há alguns anos vem desenvolvendo experimentos sobre como tons e frequências podem influenciar na nossa percepção de sabor. Os resultados desses estudos são incríveis, fazendo com que o barista cogite muito mais coisas, além dos seus conhecimentos técnicos, na tentativa de preparar o café perfeito.

Figura 5. Boram UM, tricampeão brasileiro de barismo e campeão mundial de barismo em 2022 usando xícaras rosas para fazer sua bebida com leite. Retirado de: uol.com.br.

Sendo assim, na cafeteria perfeita, apenas tocaria músicas de alta frequência, mais especificamente 1046.5Hz, frequência sonora que Spence observou que ressalta atributos de doçura nas bebidas degustadas. Mas além de ser uma música em alta frequência, seriam tocadas em um piano, pois como observado em outro estudo de Spence, seu cappuccino assim seria percebido como mais agradável, menos amargo, com dulçor e complexidade mais altas.

Como Fabiana Carvalho observou, xícaras rosas podem ressaltar atributos de doçura e corpo, enquanto xícaras amarelas podem ressaltar a percepção de acidez. Sendo assim, na cafeteria perfeita, poderíamos trabalhar ainda mais a questão do equilíbrio e elegância da bebida através da cor das xícaras, onde cafés com maior acidez seriam servidos em xícaras rosa, enquanto cafés com maior doçura seriam servidos em xícaras amarelas, a fim de equilibrar mais esses atributos.

E não para por aí, nada de servir cafés em xícaras ásperas! Para não incorrer em uma finalização seca, melhor dar preferência às xícaras lisas. E quanto ao formato? Depende, se você quer ressaltar os aromas do café, melhor uma xícara formato “tulipa”. Já para ressaltar sua doçura e acidez, melhor escolher uma xícara no formato “split”. Vai por mim, cada detalhe importa para uma experiência perfeita.

Figura 6. Xícaras Tulip, Split e Open em sequência da esquerda para direita. Retirado de: revistaespresso.com.br.

A neurogastronomia rompe as paredes da universidade e chega à cafeteria. Basta assistir algumas apresentações de campeonatos de barismo ou participar de um curso de prova de cafés para concluir que cada vez mais pesquisadores são mencionados nas áreas de indústria e inovação do café e seus estudos são colocados em prática, até mesmo no dia a dia de quem pensa o serviço do café. Por isso, demonstra-se tão importante os estudos nessa área, afinal, não comemos e não bebemos apenas por necessidade, mas por prazer e, até mesmo, como no caso do café especial, por hobby.

E como tornar essa experiência ainda mais agradável ou como fugir das experiências ruins? Como entender nossa percepção e a influência de fatores externos sobre ela? Essas são perguntas que estão sendo respondidas por essas e diversas outras pesquisas nessa área tão ampla e saborosa.

E pra quem está no dia a dia da cafeteria, com a missão de oferecer sempre um café o mais perto da perfeição, essas são apenas mais algumas variáveis que entram no processo de extração, um trabalho que leva cerca de 30 segundos para um espresso, entre 2 a 4 minutos para um filtrado, mas que leva uma carga enorme de conhecimento e estudos por trás. Sendo assim, muito se fala que um café deve ser especial do plantio até a xícara, mas percebemos que vai muito além disso, que deve ser especial até o último gole, que deve ser especial pela xícara, pela frequência da música no ambiente, ou por diversas outras influências que ainda descobriremos.

Referências

Crisinel, A.-S., & Spence, C. (2011). Crossmodal associations between flavoured milk solutions and musical notes. Acta Psychologica, 138(1), 155–161. https://doi.org/10.1016/j.actpsy.2011.05.018

Crisinel, A.-S., & Spence, C. (2009). Implicit association between basic tastes and pitch. Neuroscience Letters, 464(1), 39–42. https://doi.org/10.1016/j.neulet.2009.08.016

Crisinel, A.-S., & Spence, C. (2010). A Sweet Sound? Food Names Reveal Implicit Associations between Taste and Pitch. Perception, 39(3), 417–425. https://doi.org/10.1068/p6574

Spence, C., & Carvalho, F. M. (2020). The coffee drinking experience: Product extrinsic (atmospheric) influences on taste and choice. Food Quality and Preference, 80, 103802. https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2019.103802

Spence, C., & Carvalho, F. M. (2019). Assessing the influence of the coffee cup on the multisensory tasting experience. Food Quality and Preference, 75, 239–248. https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2019.03.005

Carvalho, F. M., Moksunova, V., & Spence, C. (2020). Cup texture influences taste and tactile judgments in the evaluation of specialty coffee. Food Quality and Preference, 81, 103841. https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2019.103841

Carvalho, F. M., & Spence, C. (2018). The shape of the cup influences aroma, taste, and hedonic judgements of specialty coffee. Food Quality and Preference, 68, 315–321. https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2018.04.003

Carvalho, F. M., & Spence, C. (2019). Cup colour influences consumers’ expectations and experience on tasting specialty coffee. Food Quality and Preference, 75, 157–169. https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2019.03.001

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Capa do post: Foto de Nathan Dumlao | Unsplash.


Sobre o autor

Marcondes Trindade (@ondes27). Aluno de Psicologia da Universidade de Brasília e barista fundador da cafeteria Acorde 27 Cafés Especiais. Como barista, participa de competições e se interessa pelos estudos de como fatores externos à bebida podem influenciar seu sabor.

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Trindade, M. (2023, 6 de outubro). Percepção multissensorial e a busca pelo café perfeito. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2023/10/06/percepcao-multissensorial-e-a-busca-pelo-cafe-perfeito/

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