73 Hz é o novo lúpulo! Escutar sons de baixas frequências deixa a cerveja mais amarga

Quando se fala da apreciação de um alimento ou bebida, o paladar é o que se destaca. E qual é o sentido que também influencia na percepção do sabor? Se você pensou no olfato, acertou em cheio – quando estamos resfriados, um sorvete de menta pode se tornar apenas um sorvete doce, pois, com este sentido prejudicado, torna-se difícil diferenciar os diferentes sabores de uma casquinha de muitas bolas. Algumas pessoas podem ter pensado também na visão. Afinal, um prato bem elaborado e montado, seduz pelo aspecto visual. Meu filho, de três anos, recusa alguns alimentos pela textura, então adiciono o tato para a lista. Os amantes de um alimento crocante podem incluir a audição (Figura 1). E a cervejaria Beck’s trouxe mais força para a participação da audição na degustação de uma cerveja com o grande público.

Figura 1. Existe uma interação entre a audição e o paladar. Foto: Antonio Aisengart Menezes©.

Foi feita uma campanha forte de marketing pela cervejaria, com a criação de site totalmente dedicado (já está fora do ar, mas veja o teaser no Vídeo 1) e live no Instagram de Bruna Linzmeyer com Jonathan Azevedo, que provam uma cerveja ao vivo ouvindo as diferentes versões de uma música e sentem a cerveja mais ou menos amarga, conforme a faixa. E a jogada publicitária valoriza o amargor de sua cerveja (20 IBUs – índice de amargor), dos mais altos entre as cervejas claras, alcançado com uso do lúpulo (Humulus lupulus, Figura 2).

Vídeo 1. Teaser da cervejaria Beck’s que mostra pessoas que percebem o sabor da cerveja mais amargo quando escutam a “Frequência Beck’s”, que é uma faixa que tem a frequência sonora fundamental de 73 Hz.
Figura 2. Lúpulo. Retirada de Rawpixel.

A campanha sugere que com a música certa, outras cervejas conseguem se aproximar do amargor da Beck’s. Para isso, elaboraram uma playlist com a participação de nomes de peso da música eletrônica, como Vintage Culture e Gui Borato. As músicas foram remixadas na frequência de 73 Hz, pois baixas frequências promovem maior sensação de amargor na degustação de alimentos e bebidas (veja um trecho no Vídeo 2).

Vídeo 2. Trecho de faixa remixada em 73 Hz.

A cervejaria não foi a responsável pela descoberta, apenas se inspirou em estudos acadêmicos que demonstram o potencial de sons para alterarem nossa percepção do paladar, apurando, por exemplo, sensação de doçura (com sons de alta frequência). E estes estudos não são de agora – o pioneiro foi o psicólogo Kristian Holt-Hansen, em 1968!

Dada a profícua produção acadêmica na área, já existe uma denominação para o campo do conhecimento que trata da relação de processos neurobiológicos com a gastronomia, a Neurogastronomia. Uma das principais referências na área é o livro homônimo de Gordon Shepherd. Este campo é vasto, incluindo a melhora do paladar para pacientes que o perdem durante tratamentos quimioterápicos… mas voltemos ao nosso foco.

O trabalho original de Holt-Hasen também envolveu cerveja. Os participantes relacionaram dois tipos da cerveja Calsberg a diferentes tons puros de frequências sonoras. Quando degustaram novamente a cerveja com a trilha sonora correspondente, a maior parte dos participantes achou a experiência mais agradável. Então podemos dizer que cada comida ou bebida tem uma sonoridade específica (mesmo que varie entre pessoas).

A própria mastigação provoca sons e cada alimento induzirá a produção de ondas sonoras com diferentes frequências. Ao abocanhar uma cenoura crua, a frequência sonora será de 1 a 2 KHz, enquanto que em um pão crocante será superior a 5 KHz. Desta forma, a própria condição física do alimento influencia na indução da percepção do sabor.

E o som ambiente também interfere. A comida de avião é conhecida por não ser saborosa. Parte do porquê está no alto ruído a bordo, que suprime os sabores salgado, doce e a apreciação da comida como um todo. Como a moeda sempre tem dois lados, a companhia aérea British Airways criou uma trilha sonora para o momento da refeição. Cada prato ou etapa é acompanhado de uma música específica para melhorar a experiência gastronômica.

Ainda não está totalmente estabelecido o mecanismo de como os sons influenciam na percepção do sabor, porém é certo que ele não é unifatorial. A expectativa de qual será o sabor tem seu papel, assim como nosso estado emocional. Ao escutarmos uma música agradável, seja antes da degustação (influenciando a expectativa) ou durante (por mediação emocional), tenderemos a perceber mais a doçura do alimento. E a música pode dirigir nossa atenção para um aspecto específico da experiência, ampliando a sensação de dado aspecto.

Para os amantes de nossa rica estrutura cerebral, convém dizer que o gosto, a temperatura e a textura oral são primeiro processados na ínsula – córtex primário do sabor. Já o início do processamento do cheiro ocorre no córtex piriforme. Porém, há evidências que o tratamento posterior da informação ocorre em uma entidade unificada, nos córtex cingulado e orbito-frontal. E onde entra a audição? Há evidência, em experimentação com ratos, que têm olfato mais apurado, de conexões direta do sistema auditivo com o olfatório. Se assim acontecer conosco, humanos, pode ser que o processamento da audição ocorra junto aos demais sentidos para formar o gosto.

Quer mais amargor, então calce seus ouvidos e ouça a frequência Beck’s!

Referências

Bachorik, J. P., Bangert, M., Loui, P., Lark, K., Berger, J., Rowe, R., & Schlaug, G. (2009). Emotion in motion: Investigating the time-course of emotional judgments of musical stimuli. Music Perception, 26, 355-364. https://doi.org/10.1525/mp.2009.26.4.355

Blasco, L. (2020, 23 de outubro). Por que gostamos tanto de comida crocante? (e como o som se tornou o ‘gosto esquecido’). BBC. https://www.bbc.com/portuguese/geral-54592889

Catraca Livre (2020, 18 de setembro). Você sabia que uma frequência sonora pode alterar o gosto da sua cerveja?  https://catracalivre.com.br/criatividade/frequencia-becks/

Endo, H., Ino, S., & Fujisaki, W. (2016). The effect of a crunchy pseudo-chewing sound on perceived texture of softened foods. Physiology & Behavior, 167, 324-331. https://doi.org/10.1016/j.physbeh.2016.10.001

Holt-Hansen, K. (1968). Taste and Pitch. Perceptual and Motor Skills, 27(1), 59–68. https://doi.org/10.2466/pms.1968.27.1.59

Kanwal, J. K. (2016, janeiro 11). Brain tricks to make food taste sweeter: How to transform taste perception and why it matters. Science in the News – Harvard Univertsity. https://sitn.hms.harvard.edu/flash/2016/brain-tricks-to-make-food-taste-sweeter-how-to-transform-taste-perception-and-why-it-matters/

Spence C. (2012). Auditory contributions to flavour perception and feeding behaviour. Physiology & behavior, 107(4), 505–515. https://doi.org/10.1016/j.physbeh.2012.04.022

Spence, C., Michel, C. & Smith, B. (2014). Airplane noise and the taste of umami. Flavour, 3(2). https://doi.org/10.1186/2044-7248-3-2

Wang, Q. (2017). Assessing the mechanisms behind sound-taste correspondences and their impact on multisensory flavour perception and evaluation [Tese de Doutorado, University of Oxford]. Oxford University Research Archive. https://ora.ox.ac.uk/objects/uuid:7425de0b-a042-4f38-9840-291618d05cd2

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Capa do post: Imagem de Sebastián Mora.


Sobre o autor

Antonio Aisengart Menezes. Um prazer colaborar no ‘Eu Percebo’ nesta jornada enquanto estudante de Psicologia. Os dias com o povo da ‘Desterro’ fazendo cerveja deram um ar de nostalgia durante a elaboração do texto. Sigo colhendo os frutos e flores (que venham os lúpulos!) de minha trajetória diversificada na biologia e nas práticas cooperativas na agroecologia.

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Menezes, A. A. (2021, 15 de dezembro). 73 Hz é o novo lúpulo! Escutar sons de baixas frequências deixa a cerveja mais amarga. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/12/15/73-hz-e-o-novo-lupulo-escutar-sons-de-baixas-frequencias-deixa-a-cerveja-mais-amarga/

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