Sexto sentido: Além dos sentidos básicos

Até hoje aprendemos que temos cinco sentidos, apesar de outras sensações estarem próximas entrar na lista (dor, propriocepção, etc.). Mas já imaginou poder se localizar no ambiente por uma espécie de sonar como os morcegos fazem? Com exceção de poucos cegos que desenvolvem ecolocalização, os seres humanos não possuem uma percepção programada para funcionar como um radar. Em outros casos, não percebemos algo porque nossos órgãos sensoriais são específicos e possuem limites para captação e transformação da energia ambiental. Isso também se aplica a outros mamíferos. Por exemplo, nós e ratos não enxergamos a luz infravermelha (Figura 1).

Figura 1. Esquema do espectro visível ao olho humano. A luz infravermelha fica além do espectro da luz vermelha, por isso possui esse nome. Clique na imagem para ampliar. Fonte da imagem: pt.wikipedia.org.

Apesar de não vê-la, você mantêm contato com a luz infravermelha todos os dias, por exemplo, ao acionar um controle remoto. Você clica num botão para mudar o canal da televisão e uma onda sai do seu controle e chega até a TV. Entretanto, você não vê nada desse caminho da luz!

Mas como seria se pudéssemos ver coisas que nossos órgãos dos sentidos não estão preparados para captar? Como nosso cérebro interpretaria essa informação? Poderíamos ampliar a capacidade de um sentido utilizando as áreas corticais de outro sentido (como os cegos fazem)? Na de capa do post temos um exemplo da ficção que se aproxima desta situação. Demolidor, personagem da Marvel Comics, ficou cego na adolescência ao entrar em contato com lixo tóxico. Após o acidente seus outros sentidos ficaram desenvolvidos além da capacidade humana. Como você poderá ler no texto, talvez isso agora não esteja tão mais distante.

No texto sobre como o tato pode enganar o paladar, apresentamos uma pesquisa simples que mostra como misturar os sentidos durante uma tarefa atrapalha nosso julgamento sobre a comida. Agora outra pesquisa fez algo inusitado e inovador ao adicionar estímulos que não são processados naturalmente por um animal. Pesquisadores fizeram algumas ratinhas perceberem a luz infravermelha – aquela que nem nós e nem os ratos enxergam! Essa pesquisa foi realizada por Miguel Nicolelis e sua equipe. Ele é um pesquisador brasileiro da Universidade de Duke e fundador e diretor científico Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS).

Antes de explicar a pesquisa, você deve saber que as pesquisas com animais, geralmente, começam com o aprendizado de alguma tarefa. Para “incentivar” os animais a realizarem essa tarefa, eles podem, por exemplo, sofrer privação por algum tempo de água e/ou comida. Então, os pesquisadores elaboram algum problema que os animais devem resolver para ganhar a água e/ou a comida. Isso permite que os pesquisadores entendam o comportamento de aprendizagem do animal antes e depois da manipulação de variáveis que lhes interessam.

Os animais da pesquisa de Nicolelis ganhavam água pelo comportamento adequado na tarefa. Seis ratas (Figura 2) foram treinadas numa tarefa de discriminação visual: colocar o focinho na porta em que uma luz comum de LED se acendia. Esses animais recebiam água toda vez que colocavam o focinho na porta que a luz acendeu (Figura 3a).

Figura 2. Rato da raça Long Evans, a mesma utilizada na pesquisa. Fonte da imagem: Hilltop Lab Animals.

Quando a taxa de acerto foi superior a 70% os animais foram para uma nova etapa. Nesta segunda etapa os pesquisadores fixaram uma espécie de capacete na cabeça das ratas. Nesse capacete havia um sensor de infravermelho. Esse sensor funcionava como um órgão do sentido. Ele captava a luz infravermelha e a transformava em corrente elétrica.

Esse sensor foi conectado por microeletrodos a uma região específica do cérebro das ratas, S1, se transformando numa neuroprótese. A região S1 é responsável pelo tato nas vibrissas (bigodinho) do animal. Os ratos usam essas vibrissas para detectar a informação do ambiente (Figura 3b). Essa neuroprótese permitia que as ratas percebessem níveis de luz infravermelha, codificada por meio como estimulação elétrica em S1. E essa estimulação aumentava perto da fonte de luz infravermelha.

Figura 3. À esquerda (a): um esquema da ratinha com seu capacete (neroprótese) com sensor infravermelho. O círculo rosa representa a luz infravermelha acesa estimulando o sensor e esse enviando informação à área S1 no cérebro do animal. À direita (b): representação da vibrissa de um rato e a área S1 (círculo vermelho) indicada em seu cérebro. Clique na figura para ampliar. Fonte (a): artigo dos autores na Nature  Fonte (b): Science Direct

Após o implante da neuroprótese os animais foram treinados numa tarefa idêntica à primeira. Mas agora, receberiam água apenas se enfiassem o focinho na porta em que se acendesse a luz infravermelha (Figura 3a). Antes de continuarmos, lembrem-se, os ratos não enxergam a luz infravermelha. Mas não é que as ratas perceberam o infravermelho nessa nova etapa! O equipamento estava captando a luz infravermelha, transformando em corrente elétrica e enviando para o cérebro. E o cérebro dos animais conseguiu interpretar essa nova informação como uma estimulação ambiental! A taxa de acerto subiu com o passar dos dias e ultrapassou os 70%.

Vídeo 1. Uma ratinha durante a tarefa. Fonte: New Scientist e no canal do Blog percepto no Youtube.

Como já dissemos em outros textos, os pesquisadores são muito espertos. As ratas talvez pudessem não responder ao equipamento conforme eles interpretaram, mas sim a outro evento do ambiente. Para tirar essa dúvida usaram a boa e velha Psicofísica para manipular outras variáveis e observar o comportamento decorrente disso. Notem que a Psicofísica não é apenas algo velho com valor histórico. Pesquisas de ponta a utilizam até hoje!

Nesses testes Psicofísicos os pesquisadores aumentaram a dificuldade na tarefa (mudando o ângulo das portas). Também deixaram essas portas mais juntas, o que dificultaria a identificação de qual porta teve a luz infravermelha acesa.

Nicolelis e sua equipe também pensaram que as ratas poderiam não ser sensíveis a intensidade da luz infravermelha e estariam funcionando num esquema de tudo-ou-nada (não percebiam ou percebiam). Então, alguns animais receberam input da neuroprótese apenas do tipo tudo-ou-nada sobre a luz infravermelha. Outros animais receberam inputs de intensidade gradativa. Também deixaram dois animais sem estimulação, apenas com a neuroprótese inativa (afinal, tem que se saber se apenas usá-la não alterava o comportamento também).

Bem, o que esses testes apontaram? Que as ratas realmente perceberam a luz infravermelha, pois o comportamento variava com a manipulação das variáveis. Também, que a percepção da intensidade da luz infravermelha era importante para elas, uma vez que influenciou a latência de seu comportamento (tempo entre apresentação da luz e a resposta do animal).

Exames posteriores mostraram que os neurônios de S1 (Figura 3b) mantiveram habilidade para responder ao comportamento de mexer as vibrissas (bigodinhos). Esses neurônios estavam fazendo duas representações corticais, uma para o tato e outra para a luz. E essas representações ficaram sobrepostas, criando uma nova região de processamento sensorial bimodal (processando dois sentidos)!

E o reflexo comportamental dessa sensação bimodal foi marcante no começo da segunda etapa. Como a neuroprótese se conectava à mesma região que representa o bigode no cérebro, as ratas não sabiam como interpretar essa estimulação. Então elas realizavam comportamento de passar as patas no bigode, como se houvesse uma estimulação chegando ali e não do sensor ligado no cérebro.

Essa pesquisa traz possibilidades enormes para nossa percepção e nossos órgãos dos sentidos. Já faz algum tempo que alguns pesquisadores tentaram criar uma retina eletrônica, mas a qualidade da imagem é ruim. O que Nicolelis e colaboradores fizeram vai além. Como eles apontam, essa foi a primeira vez que um ser vivo foi capaz de ultrapassar as limitações sensoriais de seu corpo e perceber estímulos aos quais não estão equipados para perceberem. Ainda, pode ser possível ampliar a capacidade sensorial dos sentidos que já utilizamos (igual ao Demolidor da ficção da Marvel).

Infelizmente as ratas não são capazes de dizer o que sentiram ao perceber a luz infravermelha. Então ainda não sabemos o que essa nova percepção faz sobre nossa consciência do mundo.

A pesquisa de Nicolelis e seus colaboradores criam grandes possibilidades de uso de seus resultados. Para o estudo da percepção ela pode ter aberto um ramo totalmente novo: a percepção bimodal. Qual estímulo prevalecerá para ser processado pela área primária do cérebro? O estímulo que essa área está equipada para processar ou o novo/adaptado?

Imagine, por exemplo, o caso de pessoas cegas. Em vez da retina eletrônica, elas poderiam receber uma neuroprótese para perceber o calor do corpo de outras pessoas e do ambiente ao redor. Assim poderiam perceber se as superfícies distantes são frias ou quentes, e elas poderiam machucá-los (Figura 6). Até mesmo poderiam ter noção do que está ao seu redor pela forma do mapa de calor que perceberiam.

Figura 4. Uma rua fotografada por uma câmera infravermelha. Será que seria assim que as pessoas cegas com uma neuroprótese para perceber infravermelho ligado ao cérebro perceberiam a rua? Fonte da imagem: abordagempolicial.com.

Na mistura de sensações naturais um sentido se sobrepõe ao outro e altera nossa percepção sobre o alimento. Mas uma pessoa com uma neuroprótese, como a das ratas, entenderia que está recebendo informações de uma nova forma de estímulo que nunca processou? Ou apenas interpretaria esse estímulo como algo do ambiente sem base uma base real, como uma alucinação? A resposta sobre a consciência da percepção bimodal é incerta. Apenas novas pesquisas responderão a essas perguntas.

Referências

Thomson, E.E., Carra, R., & Nicolelis, M.A. (2013). Perceiving invisible light through a somatosensory cortical prosthesis. Nature Communications, 4:1482. https://doi.org/10.1038/ncomms2497

Áudio do post

Siga por e-mail e compartilhe nas redes sociais

Fonte da imagem da capa do post: welmyhouse.blogspot.com.


Sobre o autor

Bruno Marinho de Sousa é Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e trabalha com psicologia clínica e divulgação científica.

Este texto foi originalmente publicado no Blog Percepto em 17/02/2013.

Termos de reprodução e divulgação do texto

Todos os textos publicados no eupercebo.unb.br podem ser reproduzidos na íntegra ou parcialmente por meios impressos e digitais, desde que não sofram alterações de conteúdo e que a fonte seja mencionada. Como referenciar este texto (normas da APA):

Sousa, B. M. (2019, 2 de dezembro). Sexto sentido: Além dos sentidos básicos [Blog]. Recuperado de  https://eupercebo.unb.br/2019/12/02/sexto-sentido-alem-dos-sentidos-basicos/ 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *