Erros de impedimento no futebol: A física e a psicologia experimental em defesa dos bandeirinhas

Todo bom brasileiro, mesmo não sendo fanático por futebol, já deve ter alguma vez na vida ofendido o assistente do juiz, popularmente conhecido por bandeirinha, em uma partida (Figura 1). Quem nunca questionou a falta de preparo, competência, ou mesmo o caráter daquele profissional que tem como única função levantar uma bandeira?

Figura 1. Cena típica em uma partida de futebol. Fonte da imagem: clubedospentelhos.blogspot.com.

A função, marcar o impedimento, parece simples: levantar a bandeira se, no momento do passe, o jogador que receber a bola estiver mais próximo do gol em relação ao último defensor (excluindo o goleiro). Porém, esta tarefa exige do profissional capacidades que vão além daquelas que seu sistema visual é capaz de realizar, relacionadas a alguns processos sensoriais e perceptivos. Entre eles a simultaneidade, a paralaxe e o flash-lag.

Simultaneidade e movimentos sacádicos

Uma das possíveis causas de erros de impedimento está relacionada ao movimento dos olhos. A todo o momento nossos olhos realizam deslocamentos para a região da fóvea, a área de visualização detalhada da cena visual, que são chamados de movimentos oculares sacádicos (MOSs). Eles possuem latência (intervalo entre a apresentação do estímulo e a reação do indivíduo) de 180-200 milissegundos (ms) e duração dependente da amplitude (distância) da sacada; mas podemos assumir que um MOS termina por volta de 250-300 ms do início do estímulo. 

No momento anterior ao julgamento do lance, o assistente está olhando diretamente para um jogador de ataque com a posse de bola, e o último jogador da defesa está na periferia de seu campo visual (ou mesmo fora deste). No momento do passe, o assistente realiza um MOS para fixar na fóvea o último defensor e avaliar se o atacante que está para receber a bola se encontra antes ou depois deste defensor. Em situações como esta, ao considerarmos, por exemplo, que defensor e atacante estão na mesma linha no momento do passe, indo a direções opostas do campo a uma velocidade de 5 m/s, após um MOS de 250-300 ms, o atacante estará 2,5-3,0 m à frente do defensor (Figura 2a). Esta distância seria de 1,25-1,50 m caso o defensor estivesse parado (Figura 2b).

Figura 2: Distância percorrida por jogadores que estavam na mesma linha no momento do passe, após término de um movimento ocular sacádico (250-300 milissegundos) efetuado pelo assistente. 

Em resumo, no momento do passe de bola, o gasto temporal exigido na mudança do foco da visão, pode fazer com que o deslocamento executado por um ou mais jogadores coloque o atacante em posição de impedimento, mesmo que o assistente esteja posicionado na linha do último defensor. Este processo é agravado se, além do MOS, é exigido um movimento de rotação de cabeça. O Vídeo 1 abaixo ilustra o fenômeno.

Vídeo 1: Recorte de reportagem exibida no dia 18/03/2012 pela Rede Globo, no programa Esporte Espetacular. Modificado do endereço migre.me/9BcwO .

Paralaxe e o efeito geométrico

Outro fenômeno que interfere na marcação de impedimentos é a Paralaxe, caracterizada pelo deslocamento aparente de um objeto quando se altera o ponto de observação. Diferentes posições proveem diferentes ângulos visuais e, consequentemente, diferentes imagens de uma mesma cena visual. Sendo assim, o posicionamento do assistente ao longo da linha lateral em relação ao último marcador afeta de maneira decisiva a marcação do impedimento. Erros são cometidos com maior incidência quando o assistente se encontra à frente do último marcador. Mas o assistente estará fadado ao erro caso não se encontre alinhado ao último defensor, na chamada linha de impedimento. A Figura 3 e o Vídeo 2 abaixo ilustram este fenômeno.

Figura 3: Os assistentes se posicionam em média 1,2 m à frente do último defensor. Deste modo, não percebem a linha de impedimento como sendo perpendicular em relação à linha lateral do campo. Um atacante posicionado atrás do defensor na área vermelha será prejudicado, visto que o assistente o perceberá a frente do defensor (falso alarme). Mas se ele se encontrar em posição de impedimento na área vermelha, será beneficiado, dado que o assistente o perceberá atrás do defensor (omissão). Modificado de Baldo, Ranvaud & Morya (2002).
Vídeo 2: Recorte de reportagem exibida no dia 18/03/2012 pela Rede Globo, no programa Esporte Espetacular. Modificado do endereço migre.me/9BcwO .

Flash-lag

Além da paralaxe, outro fenômeno pode contribuir para erros de impedimento. É o efeito flash-lag, quando um objeto em movimento é percebido como alcançando no espaço sua posição num instante definido por um marcador de tempo (em geral, um flash do estímulo rapidamente apresentado, em experimentos feitos em laboratório). No futebol, este marcador seria o momento exato do chute em que um companheiro de time realiza um passe a um atacante que está potencialmente impedido. É neste evento abrupto que o assistente deve julgar se o atacante está à frente ou não do último defensor. O flash-lag faz com que o atacante seja percebido à frente de sua real posição ocupada no momento do passe, o que aumenta a probabilidade de erros de impedimento. Isto acontece independente da posição do assistente. 

Existem diferentes explicações para o efeito. Uma delas diz que a extrapolação perceptual seria um mecanismo de compensação de atrasos de transmissão no processamento perceptual de objetos em movimento. Outro modelo conceitual afirma que a aparição abrupta de estímulo visual (momento do passe) estaria associada com latências sensoriais longas em comparação a um estímulo em movimento (atacante). Uma explicação atencional diz que a realocação do foco atentivo no espaço requer tempo, não é percebida por aparelhos de rastreamento de movimento ocular e, apesar de muito rápida, pode interferir no julgamento do assistente. O Vídeo 3 ilustra este processo. 

Vídeo 3: Recorte de reportagem exibida no dia 18/03/2012 pela Rede Globo, no programa Esporte Espetacular. Modificado do endereço migre.me/9BcwO .

Em uma partida, não só os assistentes estão sujeitos ao flash-lag. É possível que, quando um jogador “fura” o chute, ele tenha percebido a bola (estímulo em movimento) a frente de sua real posição após o passe efetuado pelo companheiro de time (evento abrupto que define o marcador temporal).

Vários outros fatores físicos, cognitivos e psicológicos afetam a precisão do julgamento de um assistente em uma partida: motivação, estresse, preparo físico e técnico, preferências implícitas por times ou jogadores, fadiga, entre outros (Figura 4). Aqui, discutimos apenas àqueles de ordem sensorial e perceptiva. Podemos ver quão passível ao erro é a atuação do assistente (e de todos nós em situações semelhantes). Isto não diminui sua importância e função dentro do futebol, mas disso podemos tirar duas conclusões. Primeiro, talvez esteja na hora das federações de futebol quebrarem um tabu ao aceitarem que avanços tecnológicos, como o uso de detectores simultâneos, sejam utilizados em partidas oficiais (como acontece no tênis) apesar de limitações, a adoção do VAR (árbitro assistente de vídeo) é uma medida acertada que conta com avanços tecnológicos para lidar com limitações perceptuais e cognitivas que acometem os assistentes de juiz. Segundo, entender que as capacidades sensoriais exigidas a um assistente, no momento de tomada de decisão de um impedimento, vão além dos limites da espécie humana. Então, pense bem antes de ofender a mãe do bandeirinha.

Figura 4: Exemplo de fator não perceptual que influencia o julgamento do assistente. Fonte da imagem: 9gag.com.

Referências

Baldo, M. V. C., Ranvaud, R. D., & Morya, E. (2002). Flag errors in soccer games: The flash-lag effect brought to real life. Perception, 31(10),1205–1210. https://doi.org/10.1068/p3422

Catteeuw, P., Gilis, B., García-Aranda, J., Tresaco, F., Wagemans, J., & Helsen, W. (2010). Offside decision making in the 2002 and 2006 FIFA World Cups. Journal of Sports Sciences, 28(10), 1027-1032. https://doi.org/10.1080/02640414.2010.491084

Catteeuw, P., Gilis, B., Wagemans, J. and Helsen, W. (2010). Perceptual-cognitive skills in offside decision making: Expertise and training effects. Journal of Sport & Exercise Psychology, 32(6), 828-844. https://doi.org/10.1123/jsep.32.6.828  

Oudejans, R. R. D., Verheijen, R., Bakker, F. C., Gerrits, J. C., Steinbrückner, M., & Beek, P. J. (2000). Errors in judging ‘offside’ in football. Nature, 404(6773), 33. https://doi.org/10.1038/35003639

Sanabria J., Cenjor C., Marquez F., Gutierrez R., Martinez D., Prados-Garcia J.L. (1998). Oculomotor movements and football’s Law 11. Lancet, 351(9098), 268. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(05)78269-6  

Agradecimento

Agradecimento ao professor Dr. Marcus Vinícius Chrysóstomo Baldo (ICB-USP), pela gentil colaboração na indicação dos artigos de referência deste texto.

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Fonte da imagem da capa do post: extra.globo.com/esporte.


Sobre o autor

Rui de Moraes Jr.  é Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos da Universidade de Brasília.

Este texto foi originalmente publicado no Blog Percepto em 22/06/2012.

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de Moraes, R., Jr. (2019, 4 de dezembro). Erros de impedimento no futebol: A física e a psicologia experimental em defesa dos bandeirinhas [Blog]. Recuperado de  https://eupercebo.unb.br/2019/12/02/erros-de-impedimento-no-futebol/ 

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