Você com certeza já deve ter visto ou passado por uma situação um pouco parecida com a do quadrinho acima, não é? Seja porque o lugar está muito barulhento, porque o outro está falando baixo demais, ou porque você está muito longe do seu interlocutor. Qualquer que seja o motivo, de vez em quando podemos demorar muito até conseguir ouvir bem ou sermos bem ouvidos pelo outro.
A situação é sempre meio parecida: João fala alguma coisa e Maria não entende, então ela pede para ele repetir. Ele repete, mas agora ela conseguiu entender menos ainda. Os dois ficam desconfortáveis ou até meio irritados, e daqui a pouco o João já vai estar gritando ou desistindo de dizer o que queria e deixando pra lá, deixando Maria ainda mais irritada.
De qualquer forma, é sempre uma situação muito frustrante. E, quanto mais acontece, mais cansativo é – tanto para a pessoa que fala quanto para a que não escuta.
Geralmente não damos muita atenção para essas dificuldades, já que elas são mais exceção do que regra nas nossas conversas. Mas imagine chegar num ponto da sua vida em que esse tipo de desentendimento acontece quase toda vez que alguém tenta falar com você; toda conversa passa ser uma enorme batalha e uma prova de paciência. Infelizmente, chegar nesse ponto da vida é para muitos só uma questão de tempo. Ao alcançar a velhice, uma enorme parte das pessoas (no Brasil, de 36% a 81% dos idosos) começa a ter problemas de perda de audição, principalmente por causa de um problema que chamamos de presbiacusia.
O que é a presbiacusia? Por que ela acontece?
A presbiacusia é a perda auditiva que acontece em função do envelhecimento, e já começa na verdade a partir da terceira década de vida. Mais especificamente, ela é causada pela degeneração de partes da cóclea, a estrutura interna do ouvido que é a personagem principal do nosso sistema auditivo. A cóclea é composta por membranas e células com pequenos cílios, que interagem toda vez que chegam ondas de som no ouvido e enviam os sinais nervosos que fazem com que escutemos os sons. Esses cílios são bastante sensíveis, então naturalmente começam a se desgastar com o uso ao longo da vida. Assim, quanto mais eles se desgastam, menos sensíveis eles se tornam – ou seja, ouvimos cada vez menos e precisamos de sons mais altos para poder escutar.
Além do desgaste natural, que varia de acordo com a predisposição biológica de cada pessoa, existem vários outros fatores que facilitam e aceleram o processo da perda de audição. Algumas doenças, como a diabetes e a hipertensão, contribuem para agravar os casos de presbiacusia. Até mesmo alguns medicamentos podem ser tóxicos para os ouvidos e danificar o sistema auditivo. Porém, o maior vilão nessa história é provavelmente o mais conhecido: o barulho. A exposição frequente a sons e ruídos muito altos ao longo da vida, seja por causa do ambiente de trabalho ou por escutar músicas no volume máximo, acelera muito o desgaste dos cílios e, portanto, os problemas auditivos.
Mas e daí? Por que isso é um problema tão grande?
Bom, para começar, a população idosa – que é disparado a mais afetada – têm crescido e só tende a continuar a crescer no mundo todo. Assim, já temos um contingente demográfico de centenas de milhões de pessoas com chances altas de sofrerem perda auditiva e os vários problemas que ela ocasiona, resultando numa baixa na qualidade de vida para uma grande parcela da população. Mas quais são esses problemas?
Como já falamos aqui, um dos principais prejuízos trazidos pela presbiacusia aparece na vida social, já que ela consistentemente atrapalha a comunicação. Então, quando uma pessoa idosa perde a capacidade de ouvir, ela também perde a capacidade de conversar. Por causa disso, fica muito difícil, por exemplo, compartilhar memórias, conhecimentos ou ideias, expressar e defender suas necessidades e ficar a par das novidades do mundo e das pessoas próximas. Ela também tem prejuízo na capacidade – essencial para muitos – de ouvir música, o que pode significar uma perda de uma importante fonte de prazer e diversão.
Além disso, também temos evidências de que a perda auditiva por si só está diretamente associada ao declínio cognitivo em idosos, já que dificulta o acesso a muitos elementos que ajudam na manutenção das capacidades cognitivas. Isso significa que, ao ter problemas na audição, uma pessoa pode desenvolver mais rapidamente (até 40% mais rápido!) dificuldades na sua concentração, orientação, linguagem e memória, por exemplo. Não é nem preciso dizer que isso afetará negativamente a vida diária dessa pessoa em várias atividades diferentes, desde ler o jornal pela manhã até a lembrar de compromissos e entregar trabalhos.
Esses são apenas alguns dos vários sérios problemas da presbiacusia, que envolvem ainda o prejuízo na percepção de perigo (ao não ouvir um carro se aproximando, por exemplo) e na localização da fonte sonora dos objetos.
Frente a todas essas informações, você não ficará surpreso em saber que essa característica do envelhecimento tem relação com uma série de transtornos e perigos para a população idosa. Várias pesquisas já mostraram, por exemplo, que a presbiacusia causa uma degradação nas relações da pessoa, que com frequência se sentirá excluída, solitária, envergonhada e estressada e, a partir disso, desenvolverá sintomas de ansiedade e depressão. Assim, as pessoas acometidas perdem muita autonomia e autoestima, e tem chance de desencadear mais facilmente um quadro de demência.
O que o nosso corpo consegue fazer?
Lendo tudo isso, você pode estar pensando “Já era, envelhecer é horrível!”. Mas, apesar de ser um pensamento com certo fundamento, ainda nos falta conferir o resto dessa história. Especificamente, falta ver como o nosso corpo tenta compensar esse problema e o que nós enquanto sociedade podemos fazer para ajudar pessoas com perda auditiva.
Quando algum dos nossos sentidos falha, o nosso corpo naturalmente tem a capacidade de aliar aqueles que ainda funcionam bem às habilidades cognitivas para suprir parte da nossa deficiência: é o que chamamos de mecanismos compensatórios. Vemos isso, de certa forma, no famoso estereótipo do super-herói que é cego, mas que usando os sentidos da audição e do olfato consegue superar completamente essa falta e perceber coisas que ninguém mais percebe. É claro que esse é um exemplo exagerado, mas a ideia ainda vale e existe em menor grau na nossa realidade.
Por causa disso, uma pessoa com presbiacusia ainda consegue manter sua capacidade de conversar, por exemplo, mais ou menos preservada. É importante saber aqui que entender a fala de outra pessoa vai bastante além de só ouvir: também fazemos constantemente leitura labial, pegamos dicas pelo contexto e deduzimos parte do que alguém está falando com base nas nossas expectativas (o que ela costuma dizer, como ela geralmente fala, etc.). E são justamente esses outros elementos que se desenvolvem mais numa pessoa que está com problemas na audição. Ela presta mais atenção e gasta mais energia para interpretar melhor esses outros sinais, e assim tenta se manter dentro das conversas.
Mesmo assim, apesar do esforço heroico do corpo para continuar capaz, ele infelizmente não chega perto de suprir 100% da falta que a audição faz. É por isso que, para que as pessoas consigam se manter bem apesar de estarem perdendo esse sentido, também é necessário um esforço social.
O que nós podemos fazer?
Uma das principais formas que desenvolvemos para ajudar pessoas com dificuldades para ouvir está em instrumentos que ajudam o corpo a compensar o que está faltando. É o caso dos aparelhos auditivos e implantes cocleares. A função dos aparelhos auditivos é, basicamente, intensificar as ondas sonoras que chegam no ouvido e assim aumentar o volume do som o suficiente para a pessoa escutar. Os implantes, por sua vez, são substitutos artificiais para a cóclea – aquela parte do ouvido grande responsável pelo processamento dos sons – e são mais recomendados para quem não pode ser ajudado pelo aparelho comum e atingiu uma perda severa de audição.
Entretanto, como a essa altura você já pode estar imaginando, essas ferramentas também não são perfeitas. O aparelho auditivo só aumenta o som, não deixa ele necessariamente mais claro ou fácil de entender. Já o implante coclear produz sons meio “robóticos”, muito diferentes da audição normal, e pode sofrer interferência de aparelhos de rádio e detectores de metal. Além disso, as pessoas que usam qualquer um deles também com frequência dizem que eles incomodam ou até machucam o ouvido. Tudo isso sem mencionar que, em vários casos, os usuários já se desacostumaram a ouvir e precisam reaprender a usar esse sentido.
E é por levar todos esses pontos em consideração que a principal aposta dos pesquisadores para lidar com o problema mundial da presbiacusia está na conscientização e educação. É importante que todos tenham informações o suficiente de que o problema existe, é sério, e pode ser minimizado com atitudes e comportamentos muito simples. Afinal, se todos ao redor de uma pessoa com presbiacusia fizerem um pouco de esforço para serem pacientes e falarem em tom mais alto e bem articulado, ela já terá muito mais facilidade para se comunicar e interagir.
Referências
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Fonte da imagem da capa do post: willtirando.com.br.
Sobre o autor
Caio de Velasco Araújo. Graduando em Psicologia pela UnB. Interessado em tudo o que é estranho e diferente, atrás da minha orelha sempre tem uma pulga. Meus interesses estão em todos os lugares, desde ouvir músicas e conversar sobre tudo até assistir análises de 2h sobre um jogo que nunca joguei. Tenho ainda uma preocupação eterna com problemas sociais, ambientais e existenciais, e gostaria de ajudar o mundo no que for possível.
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Araújo, C. V. (2021, 21 de abril). Presbiacusia: Uma batalha pela qualidade de vida. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/04/21/presbiacusia-uma-batalha-pela-qualidade-de-vida/