Você já viajou para um país em que não sabia a língua falada lá? Como você se sentiu? Bom, suponhamos que tenha sido difícil realizar tarefas básicas como pedir comida e fazer amigos. Talvez tenha se sentido isolado e com sua autoestima prejudicada. Apesar de não ter nenhum dano aparente em seu aparelho auditivo, você não foi capaz de compreender o que era falado e escrito. Agora, vamos além! Já imaginou passar por esta experiência em seu próprio país de origem? Pessoas com a Desordem do Processamento Auditivo Central (DPAC) vivem exatamente isso.
Como compreendemos a mensagem falada e escrita?
Processamento é o nome dado aos passos executados para a análise da informação para que seja possível a sua compreensão. Especificamente, o Processamento Auditivo Central refere-se à capacidade que temos de analisar ou interpretar informações que nos chegam através da audição. Esta capacidade depende do bom funcionamento das áreas auditivas do córtex cerebral e dos caminhos que conduzem o som até estas áreas. Essa função primordial atua no desenvolvimento da linguagem, das habilidades acadêmicas e também faz parte do processo de comunicação. O processamento auditivo depende de atividades sofisticadas do sistema nervoso auditivo central e se desenvolve por meio de experiências vividas no mundo sonoro nos primeiros anos de vida.
O que caracteriza a DPAC?
A DPAC é também conhecida como Transtorno do Processamento Auditivo ou Doença da Incompreensão. Pessoas com DPAC têm dificuldades em compreender o que é falado, pois têm dificuldade para processar o que foi dito. O cérebro delas não consegue “quebrar” o que foi ouvido em pedaços menores ou “juntar” em um significado (Figura 1). A disfunção pode surgir por falta de estímulos na criança até os treze anos, que é a fase com maior grau de plasticidade em identificação de sons, palavras e barulhos. Para o diagnóstico acurado de DPAC, as crianças necessitam ter uma audição sem nenhum dano e integridade das funções psicológicas básicas como atenção e memória.
A DPAC pode afetar pessoas de todas as idades e sexo. Contudo, é mais comum em crianças (2% a 7% público em idade escolar). Na infância, mais especificamente no período de alfabetização, a desordem deve ser identificada rápida e assertivamente para não comprometer o aprendizado escolar.
Os profissionais da educação frequentemente são os que primeiro notam as diferenças de comportamento e dificuldades escolares das crianças. Em muitas situações, queixas de familiares, de colegas e mesmo de educares são muito duras e injustas. É comum pessoas com DPAC já terem ouvido as seguintes queixas sobre seu comportamento: Que criança preguiçosa! Você não se dedica aos estudos! Como você é distraído! Você é muito enrolado! Preste mais atenção! No Brasil, poucos profissionais da saúde e da educação estão capacitados a lidar com esse distúrbio, o que deixa muitas crianças reféns da própria dificuldade.
Quais são os sinais do DPAC?
São vários os sinais do DPAC, como: solicitar repetição constante da informação (por exemplo, pergunta muito “o que?” ou “hã?”); trocar sons parecidos na fala e escrita (P/B, T/D, V/F); ter dificuldade em seguir instruções e executar tarefas que lhe foram solicitadas; memorização prejudicada em atividades diárias; dificuldades para ler e escrever; e incompreensão de informações em ambientes ruidosos. Ainda, crianças portadoras de DPAC geralmente são desatentas e distraídas, falam alto, são agitadas e têm dificuldade para entender conceitos abstratos ou de duplo sentido, além de inverter letras e apresentar dificuldades de orientação direita/esquerda.
O DPAC apresenta sintomas e comportamentos semelhantes aos registrados no Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e na dislexia, o que pode levar ao erro de diagnóstico. Nos casos em que a dificuldade de atenção aparece apenas em situações de muito barulho, há maior chance da avaliação apontar para a DPAC e não para o TDAH. No TDAH a falta de atenção e agitação está associada a situações de frustração (como na escola, por exemplo). Já crianças com DPAC apresentam falta de atenção generalizada.
Quais as causas?
A Associação Americana da Fala, Linguagem e Audição (ASHA) reconheceu o DPAC somente em 1996. Os especialistas não sabem ao certo quais fatores específicos são responsáveis por essa desordem. Contudo, as causas atribuídas e fatores associados mais comuns são: hereditariedade, lesão cerebral (traumatismo craniano, tumor, meningite), acidente vascular encefálico, doenças degenerativas, infecções crônicas no ouvido nos primeiros anos de vida, nascimento prematuro ou com baixo peso, atraso maturacional das vias auditivas do sistema nervoso central ou envelhecimento do cérebro (no caso dos idosos).
O diagnóstico
É feito por meio de avaliação médica com uma bateria de testes que relacionam as funções cognitivas aos comportamentos apresentados pela criança. Os testes englobam: exames clínicos, avaliação neurológica, oftalmológico e de imagem. A avaliação do neuropsicólogo também é fundamental para a indicação do tratamento, assim como a avaliação da audição com o otorrinolaringologista e o fonoaudiólogo, que realizam Exame de Processamento Auditivo Central. Através de todos os dados obtidos, os profissionais podem fazer o diagnóstico diferencial em caso de suspeitas de dislexia ou TDAH.
Existe cura para DPAC?
Estudos neuropsicológicos sugerem que não se pode falar em cura, mas lembram que o cérebro é um órgão com capacidade plástica impressionante (a chamada neuroplasticidade), que se “molda” a novos estímulos. Nesse sentido, existem formas de tratamento que fazem com que a vida do indivíduo seja mais adaptada.
Tratamento
Por ser uma desordem que afeta várias áreas da vida da criança é importante o trabalho interdisciplinar. Os principais profissionais envolvidos são o fonoaudiólogo, o neuropediatra, o neuropsicólogo e o psicopedagogo. A partir de um trabalho multiprofissional é possível elaborar um plano de reabilitação das habilidades auditivas e de ensino de estratégias para lidar com as dificuldades.
A psicoterapia é necessária para ajudar a criança a entender e reconhecer suas limitações, ajudá-la a criar estratégias para compensar essas dificuldades e fortalecer suas habilidades. Em paralelo, é realizado orientação aos pais e escola e, se for necessário, realizar o ajuste de aspectos relevantes em sua rotina.
O treinamento auditivo, que é um conjunto de tarefas acústicas com protocolos específicos com a finalidade de ativar funções e estruturas importantes do sistema auditivo, é um dos métodos terapêuticos utilizados na reabilitação. Existem dois tipos de treinamento: o informal (intervenções terapêuticas sem o uso de equipamentos específicos para o controle dos estímulos acústicos trabalhados) e o formal (realizado em cabines acústicas). O tratamento consiste em estimular o paciente com sons e pode durar de seis meses a um ano. O SENA©, Sistema de Estimulação NeuroAuditiva, utiliza um software europeu que se diferencia por tratar os problemas auditivos centrais por estimulação. Por meio dele, a estrutura harmônica do som é alterada possibilitando modificar a resposta do cérebro, o que permite o sistema auditivo melhorar os processos de percepção, resultando em melhorias de atenção e memória, facilitando assim o aprendizado.
Além disso, o professor tem um papel importante na reabilitação, posicionando o aluno com DPAC nas fileiras da frente na sala, articulando devagar as palavras e olhando diretamente ao aluno enquanto fala.
Inovação
Alguns recursos vêm sendo criados para treino fonoaudiológico e psicopedagógico. Um deles é o site Afinando o Cérebro (Figura 2), criado e desenvolvido há seis anos pelas fonoaudiólogas Ingrid Gielow e Diana Melissa Faria da Communicar Soluções Criativas. Essa ferramenta foi apresentada e premiada na X Semana de Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, recebendo menção honrosa. Foi o primeiro site do país a trabalhar habilidades de escuta e concentração por meio de jogos e áudios, tornando esse recurso virtual uma extensão do tratamento de pacientes durante e após as sessões convencionais. Um dos seus diferenciais é que ele estimula a continuidade do tratamento dentro da casa do paciente, intensificando a prática e antecipando os resultados. O site também é referência no tratamento de pessoas de qualquer idade com problemas de memória, concentração e processamento auditivo, e para aquelas que desejam manter o cérebro ativo.
Por fim…
Devemos valorizar as diferenças fundamentais dos termos ouvir/escutar. Pois quando ouvimos (ato involuntário), constatamos que nossa audição está boa, mas é possível não escutar (ato consciente), o que demanda entender, perceber, sentir, memorizar, opinar, levar em consideração e agir. O mesmo acontece com os termos entender/compreender; são palavras sinônimas em dicionários, mas com diferenças cruciais e importantes, pois quando entendemos estamos prestando atenção, enquanto ao compreendermos percebemos o verdadeiro significado das palavras
Depois de quase 25 anos da caracterização do DPAC e de muitos estudos, temos um caminho a seguir e boas informações que poderão ajudar na condução de quem apresenta essa dificuldade.
Referências
Associação de pais Inspirare. (2016). Conheça o DPAC- Distúrbio do Processamento Auditivo Central. http://www.associacaoinspirare.com.br/conheca-o-dpac/. Acessado em 2 de outubro de 2020.
Figueiredo, R., Paiva, C., Morato, M. (2016). DPAC [Desordem do processamento auditivo central]. Áudio. FIOCRUZ. https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/26632.
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Silva, T, A., Barbosa, J, S. (2017). Distúrbio do Processamento Auditivo Central: A importância do diagnóstico precoce para o desenvolvimento da criança. Anais do Décimo Encontro Internacional de Formação de Professores.
Gielow, I., Faria, D., Cerioni, H., www.afinandoocerebro.com.br. Acessado em 2 de outubro de 2020.
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Fonte da imagem da capa do post: Freepik.
Sobre os autores
Lídia Quezia Rios. Aluna de Psicologia na UnB. Gosta da área de saúde, mas tem um pezinho na clínica. Ama artesanato e origamis. Nas horas vagas aprende a língua russa.
Claudia De Tomasi Grassi Alencar. Graduada em História pela PUC-RJ, graduanda em Turismo na UnB. Sou mãe que enfrentou a DPAC com um filho em 1997, buscando informações, diagnósticos corretos e tratamentos quando tudo era novidade.
João Pedro Sousa. Aluno de Ciências Biológicas na UnB. Tem muito interesse na Psicologia de modo geral. Ama cultura asiática e games.
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de Sousa, B. C., Perícoli, L., & Rabelo, M. M. (2021, 26 de fevereiro). Por que algumas crianças ouvem, mas não compreendem? Saiba sobre a Desordem do Processamento Auditivo Central (DPAC). Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/03/23/por-que-algumas-criancas-ouvem-mas-nao-compreendem-saiba-sobre-a-desordem-do-processamento-auditivo-central-dpac/