“Nóias” na ciência: A “lombra temporal” do LSD

O LSD (Dietilamida de Ácido Lisérgico), conhecido também como papel ou doce, foi uma substância descoberta em 16 de novembro de 1938 pelo químico Albert Hofmann, embora a data mais importante para a história da descoberta dos efeitos do LSD seja 19 de abril de 1943. Nesse dia, Hofmann ingeriu uma alta dosagem e precisou voltar para casa de bicicleta, ficando então esse dia conhecido como  “Bicycle Day” (Dia da Bicicleta).

Desde então LSD se tornou uma droga bastante famosa, principalmente nos anos 70 e fez parte da história de festivais, como Woodstock em 1969 (Figura 1 e 4), inspirando músicas de sucesso como Lucy in the Sky with Diamonds (dos Beatles)  e atualmente o grupo musical formado por Labirinth, Sia e Diplo que se intitula LSD e faz referência à droga em seus clipes psicodélicos e coloridos.

Figura 1. Foto de placa escrito “Esse é o lugar original do WOODSTOCK música e artes feira realizada em 15,16,17 de agosto de 1969. Esse símbolo foi erguido pelos donos Nicky e June Gelish”. Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay.

O LSD ganhou fama por causar efeitos de distorção na percepção visual, como ver objetos se movendo, padrões geométricos, mandalas etc., mas você sabia que ele também causa distorção na percepção de tempo (Figura 2)? É o que mostra a pesquisa reportada no artigo “The effects of microdose LSD on time perception: A randomised, double-blind, placebo-controlled trial” (em tradução livre: Os efeitos da micro dose de LSD na percepção de tempo: Um ensaio clínico com amostra aleatorizada, delineamento duplo-cego e com condição placebo).  

Figura 2. Relógios distorcidos representando a distorção temporal ou “lombra temporal”. Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.

Para compreendermos bem esse estudo, é preciso entender primeiro alguns conceitos:

  1. Micro dose de LSD: significa que nessa pesquisa os participantes usaram doses de LSD menores do que a dose necessária para produzir efeitos psicodélicos ou de alteração da consciência. As micro doses são capazes de provocar apenas leves alterações na percepção e cognição. Foram usados três tipos de micro doses de 5, 10 e 20 microgramas.
  2. Percepção de tempo: também chamada de “protensão”, pode ser explicada como a consciência da duração (permanência) dos acontecimentos e tem sido compreendida como a capacidade de agregar informações de outros sistemas sensoriais (audição, tato, paladar etc.) em um período de tempo
  3. Amostra aleatorizada (ou randomizada), controlada por placebo em um estudo duplo-cego: vamos supor que você e outras pessoas estivessem no Filme Matrix e o Morpheus fosse te oferecer uma das pílulas da Figura 3. Digamos então que existam três tipos da pílula vermelha, as de efeito forte, moderado e fraco, e que a pílula azul não tem efeito (é um placebo). Entretanto, tanto você quanto o Morpheus não estão vendo as cores das pílulas e não sabem qual o efeito de cada uma delas que está sendo oferecida (é um delineamento duplo-cego). Por fim, se várias pessoas foram tomar as pílulas, cada pessoa tem a mesma chance de tomar cada um dos diferentes tipos de pílula (é uma amostra aleatorizada).
Figura 3. Pílula azul e Pílula vermelha. Imagem de Septimiu Balica por Pixabay.

Bom, agora que você compreendeu esses conceitos podemos prosseguir, certo?

Os 48 participantes do estudo tinham idades entre 55 e 75 anos, sendo a maior parte composta por homens e atendiam a alguns critérios: terem usado LSD nos últimos 5 anos, não fazerem uso de antidepressivos, entre outros.

O objetivo desse estudo era investigar a alteração da percepção de tempo provocada por micro dose de LSD em tarefas comportamentais. Outra questão que o estudo tenta diferenciar é se a alteração da percepção de tempo pelo LSD está relacionada a alterações provocadas apenas pela alteração de consciência ou se é causada por impactos da droga na química do cérebro. A utilização das micro doses é importante para essa segunda questão por ser uma tentativa de isolar os possíveis efeitos químicos no cérebro, já que não ocorrem alterações de consciência.

Para entender qual foi o “pico” da micro dose (momento em que a droga teve mais efeito), os participantes também precisaram registrar como estavam se sentindo de tempos em tempos respondendo a perguntas como “Você está tendo pensamentos incomuns?”.

Figura 4. Imagem escrito “na toca do coelho” em referência ao conto Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, sobre o qual acredita-se que o zeitgeist (espírito da época) psicodélico do LSD tenha influenciado em interpretações do livro. Imagem de Haley Lawrence por Unsplash.

Tarefa de reprodução temporal. Nessa tarefa os participantes tinham que memorizar o tempo de duração que um estímulo (círculo azul) aparecia na tela do computador e em seguida manter pressionada a barra de espaço do computador até que entendesse que o tempo pressionando a barra havia sido igual ao tempo em que círculo azul tinha aparecido na tela. Os círculos azuis apareciam e permaneciam por intervalos de alguns milissegundos.

Nessa pesquisa encontraram um efeito de “super-reprodução” (i.e., superestimação) dos intervalos de tempo em participantes que tinham usado o LSD; isso quer dizer que eles tendiam a pressionar a barra por mais tempo que o tempo real que o círculo azul tinha aparecido na tela. Esse efeito acontecia desde que o círculo fosse mostrado na tela por mais que 1600 milissegundos. Também é importante saber que aconteceu mais vezes quando os participantes tinham ingerido 10 microgramas (entre as opções de 0, 5, 10 e 20 microgramas). Os participantes foram capazes de saber se tinham tomado o LSD ou o placebo (a pílula azul do nosso exemplo) de acordo com as próprias percepções.

É possível afirmar que esse estudo mostrou duas coisas: a primeira é que o LSD dá “lombra temporal” mesmo em micro doses e a segunda é que o efeito do LSD na percepção de tempo não está relacionado ao estado de alteração de consciência provocado pela droga em maiores doses. Como a alteração não foi encontrada em intervalos inferiores a 1600 milissegundos, também é possível pensar que o LSD tem efeito em outras funções mentais, como a atenção e a memória.

Estudos como esse ajudam a entender melhor os efeitos das drogas e podem tanto auxiliar descobertas importantes do uso em tratamentos, ajudar a identificar um uso recreativo seguro (i.e., redução de danos) quanto podem esclarecer quais as melhores formas de intervenção em casos de uso abusivo identificando efeitos comuns ao uso da droga e diferenciando de sintomas de sofrimentos mentais ou doenças.

Falar sobre drogas lícitas ou ilícitas é bastante importante, como exemplo, a partir de uma pesquisa nacional realizada pela Fiocruz em 2015, de 10,9% a 11,8% das pessoas entre 18 e 34 anos que consumiram LSD alguma vez na vida consideravam muito fácil encontrar a droga. A pesquisa também reportou que pessoas de 18 a 34 anos achavam fácil o acesso tanto a drogas lícitas quanto ilícitas, em geral.

O LSD faz parte do rol de drogas ilegais no Brasil. Por isso, é importante destacar que não existe controle de qualidade ou qualquer comprovação da composição dessas drogas. Por conseguinte, não há como prever seus efeitos (veja Figura 5). No estudo apresentado, o LSD foi produzido em laboratório farmacêutico e rigorosamente controlado quanto à temperatura de armazenamento e outros cuidados de preservação da substância.

Figura 5. Ordem e…?. Imagem de Rafaela Biazi por Unsplash. É importante conhecer a posição da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre política de drogas e como ela foi noticiada pela imprensa.

Os resultados desse estudo estão em desacordo com estudos anteriores que indicaram “sub-reprodução” (i.e., subestimação) da passagem do tempo. Os métodos utilizados entre essa pesquisa e as anteriores são diferentes. Dê uma olhada na seção “para saber mais” se você tiver interesse no assunto. O acúmulo de conhecimento e a comparação de diferentes estudos é essencial para conhecermos os efeitos de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, na cognição humana. De nossa parte, ficamos no aguardo de mais trabalhos sobre LSD e sua “lombra  temporal”.  

Referências

Fundação Oswaldo Cruz & Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em saúde. (2015). III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Retirado de https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614

LSD (group). (2019). On Labirinth, Sia & Diplo present… LSD [Álbum]. Columbia. 

Orion, D. (2015, May 21). Benefits of microdosing with LSD and psilocybin mushrooms. Reset.me. Retirado de http://reset.me/story/benefits-of-microdosing-with-lsd-and-psilocybin-mushrooms/

Schiffman, H. R. (2005). Sensação e Percepção. In H. R. Schiffman: A percepção do tempo. (5a ed.). (pp. 359-360). Grupo Gen – LCT.

The Beatles (1967). Lucy in the Sky with Diamonds [Música]. On Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Parlophone.

Wachowski, L. & Wachowski L. (Diretoras). (1999). The Matrix [Filme]. Warner Bros.  

Yanakieva, S., Polychroni, N., Family, N., Williams, L. T. J., Luke, D. P., & Terhune, D. B. (2019) The effects of microdose LSD on time perception: A randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Psychopharmacology, 236, 1159–1170. https://doi.org/10.1007/s00213-018-5119-x

Para saber mais

Boardman, W. K., Goldstone, S., & Lhamon, W. T. (1957). Effects of lysergic acid diethylamide (LSD) on the time sense of normals: A preliminary report. AMA Archives of Neurology & Psychiatry78(3), 321-324. https://doi.org/10.1001/archneurpsyc.1957.02330390103013

Aronson, H., Silverstein, A. B., & Klee, G. D. (1959). Influence of lysergic acid diethylamide (LSD-25) on subjective time. AMA archives of general psychiatry1(5), 469-472. https://doi.org/10.1001/archpsyc.1959.03590050037003

Wittmann, M., Carter, O., Hasler, F., Cahn, B. R., Grimberg, U., Spring, P., … & Vollenweider, F. X. (2007). Effects of psilocybin on time perception and temporal control of behaviour in humans. Journal of Psychopharmacology21(1), 50-64. https://doi.org/10.1177/0269881106065859

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Capa do post: Imagem de Andrew Martin por Pixabay.


Sobre a autora

Clara Fernandes Rezende Nunes. Graduanda de Psicologia pela UnB, interessada em psicologia clínica, psicologia forense, avaliação psicológica e neuropsicológica, psicologia comunitária e psicanálise. Gosta de ouvir música (principalmente música eletrônica e indie) e montar playlists pra qualquer momento da vida.

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Nunes, C. F. R. (2020, 22 de dezembro). “Nóias” na ciência: A “lombra temporal” do LSD [Blog]. Retirado de https://eupercebo.unb.br/2020/12/23/noias-na-ciencia-a-lombra-temporal-do-lsd

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