Em uma entrevista de 2013 para a revista americana Esquire, Brad Pitt contou que tem dificuldades para reconhecer os rostos das pessoas que ele encontra. Segundo Brad, isso as leva a acharem que ele as está desrespeitando e ele acaba sendo visto como egocêntrico e arrogante. O renomado cientista e neurologista, Oliver Sacks, também conta que tem dificuldades para reconhecer rostos, incluindo pessoas mundialmente famosas. Às vezes não reconhece seu próprio rosto no espelho. A princesa herdeira da Suécia, Vitória, é mais uma pessoa famosa que já relatou condições parecidas. Todos eles têm em comum a dificuldade de reconhecer rostos, algo curioso e intrigante e que pode ser mais comum do que se pensa.
Essa condição se chama “prosopagnosia” e foi descoberta pelo médico alemão Joachim Bodamer, que descreveu casos clínicos de soldados que tinham o reconhecimento facial prejudicado. Quando analisamos a origem da palavra, fica mais fácil de entender. No grego, “prosopon” significa rosto ou cara e “agnosia” significa incapacidade de reconhecer. Dessa forma, prosopon + agnosia = incapacidade de reconhecer faces. A prosopagnosia é uma condição que algumas pessoas possuem, a qual as impede de reconhecer o rosto de pessoas conhecidas, de diferenciar um rosto de outro ou de conseguir se lembrar de informações do rosto que estão vendo, como o nome da pessoa, por exemplo. Em outros casos, as pessoas podem ser incapazes de reconhecer outras características sobre a face, como a expressão de gênero ou o grau de atratividade. Nesse sentido, a condição é relativamente variável e se manifesta em diferentes graus e de diferentes formas. Essas pessoas apresentam essas dificuldades mesmo tendo níveis normais de inteligência, memória e visão.
Existem dois tipos principais de prosopagnosia: a desenvolvimental e a adquirida. A diferença entre elas é a forma que essa dificuldade se desenvolve na pessoa. No caso da desenvolvimental, pode-se dizer que ela decorre do fato da pessoa não conseguir desenvolver, durante seu crescimento, os mecanismos necessários para o reconhecimento de rostos. Já a adquirida tem esse nome porque a pessoa conseguia reconhecer faces antes, mas perdeu essa capacidade em algum momento de sua vida. Isso pode ocorrer por meio de alguma lesão que pode ser ocasionada por diversas como, por exemplo, um traumatismo de acidente automobilístico ou um derrame cerebral (acidente vascular encefálico).
Na entrevista citada no início do texto, Brad Pitt revela que gostaria de fazer testes para saber se é prosopagnósico ou não. Quais testes são esses e como são feitos? Existe muita variação entre os testes aplicados. Para exemplificar: alguns destes testes avaliam a dificuldade de identificar rostos famosos pelo nome (Figuras 1 e 2), outros verificam a baixa familiaridade a curto prazo com rostos recém apresentados. Há, ainda, quem use questionários ou peça para a pessoa relatar as dificuldades com o reconhecimento facial em seu dia a dia. A verdade é que a marca dos prosopagnósicos é a redução na habilidade ou a inabilidade de reconhecer rostos que eles viram antes. Portanto, testes diagnósticos chave são aqueles que examinam o senso de familiaridade para rostos já vistos anteriormente.
Isso nos leva a outro ponto. Já que essa condição vem sendo cada vez mais documentada, estudada e testada, qual a prevalência dela na população? A prosopagnosia adquirida é rara, porém a prosopagnosia desenvolvimental é mais comum do que aparenta ser. A primeira investigação da prevalência dessa condição foi feita em 2006 por um estudo conduzido com 689 voluntários. Os resultados revelaram que 17 pessoas possuíam prosopagnosia desenvolvimental, o que dá em torno de 2,5% da amostra. Desde então, muitos estudos relatam a prevalência entre 2 a 3% da prosopagnosia desenvolvimental, o que dá algo em torno de uma pessoa diagnosticada a cada amostra de 50 pessoas avaliadas (considerando um recrutamento aleatorizado).
As estruturas cerebrais envolvidas no reconhecimento de faces são variadas. Existem redes neurais que se ativam durante o reconhecimento de faces. Uma área que se destaca é uma pequena região chamada de área facial fusiforme (ou fusiform facial area em inglês; Figura 3), pois ela responde fortemente à percepção de faces. Ela compõe um núcleo do processamento de faces composto também por duas outras regiões que são a área facial occipital e a porção superior do sulco temporal superior (Figura 4). Portanto, existem evidências de que porções dos lobos temporal e occipital estão envolvidas nesse tipo de atividade. Embora faces ativem essas áreas em ambos hemisférios cerebrais, o reconhecimento facial ativa de modo mais intenso estruturas do hemisfério cerebral direito. Houve, inclusive, discussões se a prosopagnosia adquirida era fruto de lesões bilaterais ou unilaterais, isto é, se a lesão se encontra em ambos os hemisférios do cérebro ou em apenas um deles. Hoje, sabe-se que as lesões podem ser dos dois tipos, mas, caso sejam unilaterais, a probabilidade de ter sido no hemisfério direito é bem maior.
Diante de tudo isso, surge uma importante pergunta: então como é que as pessoas com prosopagnosia fazem para reconhecer as pessoas à sua volta? Devido à sua dificuldade ou incapacidade de reconhecer os rostos, os indivíduos nessa condição desenvolvem, ao longo de sua vivência, outros mecanismos e estratégias compensatórias que usam para reconhecer e diferenciar as pessoas. Assim, alguns indivíduos com esta condição reparam em características como a voz da pessoa, sua roupa, seu cabelo ou outras características marcantes do outro que permitam o reconhecimento. Apesar disso, essa agnosia tem efeitos significativos sobre a vida dos indivíduos. Os prejuízos advindos desse déficit vão desde a esquiva de determinadas situações sociais até a escolha de carreiras que não requerem contato visual face-face com outras pessoas. Ademais, crianças podem ter dificuldades sociais nas escolas em relação a colegas e professores.
Para concluir, vale dizer que essa é uma das condições patológicas humanas que mais chama atenção por sua forma de atingir o processamento de um dos estímulos mais comuns no dia a dia do ser humano: a face. Além disso, ela é relativamente comum e, ainda assim, pouco se ouve falar dela. Pessoas com prosopagnosia frequentemente não sabem que possuem essa condição e isso pode trazer diversos problemas em suas vidas pessoais. Como disse Brad Pitt, é normal prosopagnósicos serem tachados de pessoas arrogantes, egocêntricas e egoístas. Isso pode trazer consequências para a construção de relacionamentos e prejuízos sociais e profissionais. No entanto, ter essa disfunção não impede os indivíduos de conviverem com ela. Como já foi dito, as pessoas muitas vezes só descobrem esse fato ao longo de suas vidas, quando já desenvolveram diversas estratégias alternativas para reconhecer seus amigos e contornar esse problema.
Referências
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Fonte da imagem da capa do post: tenerifenews.com.
Sobre os autores
Felipe Sêda Camilo é estudante de Psicologia na Universidade de Brasília. Amante do futebol e esportes em geral. A vida fica melhor tendo, ao lado, o melhor amigo do homem e uma boa dose de música brasileira.
Yan Vítor Deus Vieira é estudante de Psicologia na Universidade de Brasília. Interessado em Filosofia, Neurociências, Literatura e Cinema. Tentando, ainda, encontrar seu caminho e descobrir mais sobre a vida e o sentido dela.
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Camilo, F. S., & Vieira, Y. V. D. (2020, 12 de janeiro). A incapacidade de reconhecer faces: Compreendendo a Prosopagnosia [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2020/02/12/a-incapacidade-de-reconhecer-faces-elucidando-a-prosopagnosia/