Você já conseguiu diferenciar duas pessoas que estão falando ao mesmo tempo mesmo sem olhar diretamente para elas? Isso acontece porque cada pessoa tem um aparelho vocal distinto que emite ondas auditivas em comprimentos diferentes e que produz uma composição espectral do som específica, como se fossem vários comprimentos de ondas sonoras que caracterizam aquela voz. O timbre também é caracterizado pelo ataque e decaimento do som ao pronunciar palavras, ou seja, o tempo que o som leva para atingir sua máxima intensidade e para passar dela, respectivamente.
Logo, o timbre funciona como a identidade sonora da pessoa que a emite, e é por isso que conseguimos distinguir quem fala quando escutamos a voz. Por esse motivo, ainda que nos comuniquemos com uma mesma língua e repitamos palavras iguais, conseguimos distinguir as pessoas que falam. Isso porque, apesar da voz parecer um som único, ela é uma mistura de vários sons, quase indissociáveis, e que acontecem simultaneamente. O mesmo processo acontece para todos os objetos ou seres que produzem sons; cada um possui suas “digitais sonoras.
Quando emitimos nossa voz, temos uma frequência principal – chamada de fundamental – e também ondas sonoras que são emitidas juntos com a principal – chamados harmônicos –, que por mais que sejam padronizadas de forma matemática, elas são emitidas de formas diferentes em cada pessoa.
Com esse breve apanhado, percebemos que somos como instrumentos musicais distintos e em função do aparelho vocal, apresentamos diferenças de timbre com outras pessoas. Para emitirmos sons, recrutamos um conjunto de órgãos que compõem, também, o nosso sistema respiratório. Portanto, quando falamos, o ar entra pelo nariz e pela boca e passa pelas cordas vocais (que são músculos revestidos por uma mucosa semelhante à saliva) que se contraem e relaxam com a expiração. Depois, o som sai pela garganta, boca e nariz e as palavras são moldadas pela língua, lábios e a úvula (aquele “sino” no “céu” da boca). Por meio da ação coordenada dessas estruturas modulamos o som de forma impressionante!
Desse modo, a maioria das pessoas têm as mesmas estruturas físicas para emitir uma voz. Mas por que as pessoas têm vozes com timbres diferentes? Isso acontece porque as pregas vocais variam quanto a sua estrutura de pessoa para pessoa. Por exemplo, em geral os homens têm as cordas vocais mais grossas e elásticas e vibram a cerca de 125Hz, apresentando uma voz com timbre mais grave, enquanto as mulheres têm as cordas vocais mais finas e tensas e vibram a cerca de 250Hz, emitindo uma voz com timbre mais agudo. Outra curiosidade é que as crianças tem a voz mais aguda porque as pregas vocais ainda são finas e não estão completamente formadas, por isso que os meninos durante a puberdade apresentam uma mudança no timbre da voz, porque essa estrutura vocal está maturando e ficando mais grossa do que costumava ser na infância.
Uma curiosidade: além da voz se diferenciar com base em todo o aparelho fonador e nas cordas vocais, o formato e a posição dos dentes podem influenciar as características vocais. Freddie Mercury, por exemplo, creditava parte do seu sucesso aos quatro dentes incisivos a mais na parte superior da boca, o que dava à sua boca um formato projetado para frente e afetava a projeção de sua voz.
Além disso, é possível dizer que o timbre da voz também é determinado por fatores psicológicos, de emotividade, de temperamento, de gosto e até por uma avaliação estética que é influenciada por um padrão cultural. Portanto, o timbre da voz é composto por fatores heterogêneos e representa uma pessoa única com histórias particulares.
Nesse momento, você provavelmente deve estar se perguntando de que maneira nosso cérebro processa tudo isso. Sabe-se que o cérebro está dividido em duas partes, o hemisfério esquerdo e o hemisfério direito, sendo que o lado esquerdo é mais especializado para a linguagem de modo geral. No entanto, o estudo de 1997 de Hervé Platel e colaboradores forneceu evidências de que nosso hemisfério direito é mais dominante no reconhecimento do timbre.
Participaram do experimento 6 jovens franceses saudáveis que realizaram quatro tarefas envolvendo apreciação musical enquanto tinham a atividade cerebral monitorada por uma máquina de tomografia por emissão de pósitrons, PET SCAN (ver Figura 3). As tarefas consistiam basicamente em: (1) identificação, (2) mudanças no timbre, (3) mudanças no tom e (4) mudanças no ritmo. No caso da tarefa do timbre, quando os indivíduos notavam uma mudança, o botão esquerdo do mouse do computador deveria ser pressionado, porém caso a sequência permanecesse a mesma, o botão direito deveria ser pressionado.
Os resultados mostraram que na tarefa de mudança de timbre houve uma maior ativação no hemisfério direito, mais precisamente no giro frontal superior e médio e na profundidade do giro pré-central (ver Fig.4). No entanto, isso não quer dizer que o hemisfério esquerdo não esteja envolvido no processamento do timbre; foram observadas duas pequenas ativações menores na área posterior, porém não existe ainda uma explicação bem fundamentada para isso.
E por que é importante saber sobre tudo isso? Ora meu caro leitor, a ciência busca fornecer explicações para os mais diversos fenômenos e ao entender os processos neurais, podemos investigar indivíduos que sofreram alguma lesão cerebral e quem sabe promover uma maior qualidade de vida, seja no presente ou no futuro com mais estudos.
Por exemplo, um caso curioso é o de um homem de 65 anos que ficou conhecido como WDK que possuía uma lesão no lobo temporal direito ocasionada por um acidente vascular cerebral (AVC) e, em decorrência disso, não conseguia perceber diferença dos timbres das teclas de um piano e de instrumentos de percussão. O WDK sofreu o AVC em 1998, mas antes disso tinha um enorme interesse pela música, frequentava concertos, seu estilo preferido de música era jazz, até conseguia diferenciar trompetistas famosos pelo timbre. Contudo, depois do AVC, ele percebeu que não conseguia mais distinguir o timbre dos instrumentos fazendo com que a apresentação de uma orquestra não fosse mais prazerosa.
Esse caso foi estudado por C. Kohlmetz e outros pesquisadores em 2003. Eles submeteram o WDK a dez testes para estudar o efeito das lesões. Em geral, ele foi bem sucedido em quase todos os testes, com exceção de três: o de percepção de timbre, o de análise espectral auditiva e o de resposta emocional. Em relação mais especificamente sobre o teste de percepção de timbre, WDK conseguia diferenciar instrumentos de sopro, porém os instrumentos de teclado e os de percussão eram muitas vezes confundidos com os instrumentos de corda. No teste de análise auditiva e no de resposta emocional, WDK confundia os acordes e os harmônicos de tom único e apenas se emocionou com seis melodias de quarenta executadas no teste.
Vimos aqui que o timbre é uma experiência psicológica que permite o reconhecimento e a identificação de vozes marcantes, distintas e de pessoas conhecidas ou não. Ele é fundamental no reconhecimento de pessoas quando estas não estão no campo de visão ou quando existe alguma deficiência visual. Também podemos entender o timbre como uma assinatura acústica que diz respeito a sua identidade e como as pessoas te conhecem. Então, esperamos ter respondido à pergunta inicial – o que é o timbre de voz? – e apresentado como ele está presente em nossas vidas.
Para saber mais
Referências
9 fatos curiosos sobre a sua voz. (2021, 27 de maio). Revista Arco: Jornalismo Científico e Cultural. https://www.ufsm.br/midias/arco/5794/
Mendes, C. M. (2014). Algumas abordagens para o estudo das vozes. Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, 7(1), 129 – 138. https://doi.org/10.17851/1983-3652.7.1.129-138
Platel, H., Price, C., Baron, J. C., Wise, R., Lambert, J., Frackowiak, R. S., Lechevalier, B., & Eustache, F. (1997). The structural components of music perception: A functional anatomical study. Brain, 120 ( Pt 2), 229–243. https://doi.org/10.1093/brain/120.2.229
Kohlmetz, C., Müller, S. V., Nager, W., Münte, T. F., & Altenmüller, E. (2003). Selective loss of timbre perception for keyboard and percussion instruments following a right temporal lesion. Neurocase, 9(1), 86–93. https://doi.org/10.1076/neur.9.1.86.14372
Oliveto, P. (2019, 3 de março). Cientistas desvendam segredo por trás da voz de Freddie Mercury. Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2019/03/03/interna_ciencia_saude,740884/cientistas-desvendam-segredo-por-tras-da-voz-de-freddie-mercury.shtml
Prado, C. C., & Feitoza, T. F. (2020). A interferência da modulação da voz do docente na aprendizagem de universitários cegos. Revista Educação Especial, 33, e2/ 1–15. https://doi.org/10.5902/1984686X39149
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Sobre as autoras
Júlia Oliveira de Assis. Graduanda em Psicologia na Universidade de Brasília, viciada em livros e séries, mas não dispensa uma boa festa. Dentro da Psicologia, se interessa pela área da Saúde.
Lúcia Beatriz de Morais Andrade. Graduanda em Psicologia na Universidade de Brasília, ratinha de academia, mas fã de uma coxinha com suco de cajá. Dentre as várias áreas da Psicologia, se interessa pela Psicologia Organizacional.
Maria Luisa da Costa Silva. Graduanda em Psicologia na Universidade de Brasília, praticamente uma formiga de tanto que gosta de doce, também gosta muito de cozinhar. Tem interesse em Psicologia Organizacional e também em processos psicológicos básicos.
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Assis, J. O., Andrade, L. B. M., & Silva, M. L. C. (2023, 31 de janeiro). O que é o timbre de uma voz? Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2023/01/31/o-que-e-o-timbre-de-uma-voz/