Cantus Malus: o que o processamento auditivo tem a ver com minha desafinação vocal?

“– Cantar a gente até canta, mas cantar bonito é outra coisa…”. Essa certamente é a resposta mais utilizada por aqueles que nunca soltaram o gogó para uma plateia diferente da bucha de ensaboar e do chuveiro, utensílios bem carismáticos para se fazer uma performance na hora do banho. Se você também acha que canta “feio” e nunca teve coragem de dar uma palinha na igreja ou no Karaokê com os amigos, essa leitura com certeza irá lhe trazer muito conhecimento musical. Só para dar mais curiosidade, acredite se quiser, mas talvez a vexante desafinação vocal pode estar relacionada com disfunções no processamento auditivo.

Além de ser utilizado com muita confusão entre leigos, o termo desafinação vocal ainda não é bem delimitado. Alguns teóricos e em especial a professora de música Silvia Sobreira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entendem os padrões de afinação vocal como majoritariamente ligados a cultura. Nesse sentido, os tidos “desafinados” são indivíduos que mesmo convivendo dentro de uma cultura musical específica, não conseguem executar satisfatoriamente, com a voz, uma linha melódica modelo dentro da mesma cultura.   

O professor de música Samuel Forcucci da State University of New College foi além e afirmou que todas as pessoas podem ser alocadas em quatro grupos distintos relacionados a sua execução vocal. O primeiro grupo se refere aos Cantores Monotônicos: indivíduos com alta dificuldade de afinação, que nunca reproduzem o som proposto e em geral não percebem o erro vocal. Em segundo, Forcucci nomeia como Cantores Desafinados aqueles que seguem parcialmente a melodia proposta, com algumas distorções e capacidade de perceber levemente os erros. O terceiro grupo pertence aos Cantores Dependentes que, fazendo jus ao nome, possuem dependência total da melodia instrumental para não desafinar; estes se contrastam com o último grupo, os Cantores Independentes. É o time mais cobiçado, pois nele se encontram todos os que conseguem cantar tanto “a capella” quanto acompanhados por instrumento e seus erros de afinação são quase imperceptíveis (Vídeo 1).

Vídeo 1. Marvin Gaye cantando “I heard it through the grapevine” a capella (tradução livre: expressão que no português seria o equivalente a “ouvi dizer” ou “um passarinho me contou”). Fonte: YouTube.

A afinação está bastante relacionada com a musicalidade (apreciação sonora). Ao se escutar um fragmento musical, a compreensão e memorização dessa sequência melódica são as duas primeiras etapas da apreciação. Pessoas que não conseguem fazer esses dois passos primários podem ser diagnosticados com amusia, um déficit que negligencia a percepção musical do ouvinte — é possível ver mais sobre a amusia em outra publicação do blog clicando aqui. No caso da desafinação, o problema se dá terceira etapa: a reprodução vocal, que ocorre somente de maneira satisfatória quando a sensação (detecção do som) e percepção (processamento cortical do som) estão ocorrendo de maneira eficiente.

A detecção do som nos indivíduos ouvintes ocorre por meio do sistema auditivo periférico, que é constituído pelo ouvido externo, médio e interno (Figura 1). Já a percepção sonora se dá no sistema auditivo central, onde se encontram as estruturas do tronco cerebral, vias subcorticais, corpo caloso e o córtex auditivo primário, este último localizado no lobo temporal (Figura 2). E é nesse sistema da audição central que o mau processamento pode levar a inabilidade em decodificar, codificar e organizar padrões sonoros. Não à toa, estudos mostram que a dificuldade em aprender músicas é a principal queixa de pessoas com problemas no processamento auditivo central. As disfunções podem ser causadas tanto por fatores biológicos inatos, quanto por falta de experiência musical.

Figura 1. Representação anatômica do sistema auditivo periférico composto pelo ouvido externo, médio e interno. Fonte: Barbosa e Pannunzio (2017).
Figura 2. Representação anatômica do córtex auditivo primário que está localizado no giro temporal superior do lobo temporal. Fonte: Wikimedia Commons.

A fonoaudióloga Danielle Gregório Santos e o engenheiro Marco Aurélio Bouzada, pesquisadores da Universidade Estácio de Sá, realizaram um estudo com o objetivo de relacionar o processamento auditivo central e a desafinação vocal (Figura 3).  Para isso, inicialmente 11 homens e 6 mulheres foram testados vocalmente e divididos em 3 grupos: afinados, dependentes e desafinados. Em seguida, passaram por uma bateria de testes que visavam medir aspectos de processamento sonoro como ordenação temporal (capacidade de reter, reconhecer e resgatar a melodia), discriminação de frequência etc.  

Figura 3. Fonoaudiólogos lideram as pesquisas na área do canto e no estudo discutido no texto. Retirado de: saopaulo.sp.gov.br.

Os resultados indicaram que homens e mulheres do grupo dependente e desafinado tiveram desempenho inferior nos testes de acuidade da frequência e da duração melódica e um baixo desempenho nos testes de reconhecimento do padrão sonoro seguido da sua reprodução vocal. Os pesquisadores discutiram uma possível disfunção no corpo caloso e no hemisfério cerebral direito, apoiados em um estudo de percepção sonora de 2005, no qual a fonoaudióloga Karin Ziliotto Dias observou baixo desempenho em tarefas que envolviam processamento auditivo central em indivíduos com essas regiões cerebrais prejudicadas. Os pesquisadores também pontuaram sobre as limitações que a experiência musical têm na tendência para afinação vocal, visto que a maioria dos participantes que tocavam algum instrumento musical estavam alocados no grupo de cantores desafinados. 

Neste texto mostramos como a desafinação vocal pode estar relacionada ao processamento auditivo central. No entanto, quando o assunto é cantar bem ou mal, o cenário é de incertezas e existe a necessidade de mais estudos. Acreditamos que os psicólogos podiam se munir das teorias e práticas psicofísicas e andarem junto com os fonoaudiólogos nessa busca para entender o que leva a desafinação vocal. Encerrando o papo, vai uma dica: se você se acha desafinado, comece fazendo aulas de canto. Uma educação musical nunca é ruim!

Referências

Dias, K. (2005). Processamento auditivo em indivíduos com síndrome de Asperger. (Doutorado em Distúrbios da Comunicação Humana). https://repositorio.unifesp.br/.

Forcucci, S. (1975). Help for inaccurate singers.Music Educator Journal.

Santos, D. G, & Bouzada, M. A. C. (2013). O processamento auditivo central e a desafinação vocal.International Scientific Journal, 1(6), 93-111. http://dx.doi.org/ 106020/1679-9840/2506.

Schiffman, H. R. (2005). Sensação e Percepção. In H. R. Schiffman: Funções e fenômenos auditivos fundamentais. (5a ed.). (pp. 253-263). Rio de Janeiro: LCT.

Schochat, E. (1996). Processamento auditivo: Serie atualidades em fonoaudiologia. Lovise.

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Imagem da capa do post: Shutterstock.


Sobre os autores

Jeancarlo Macgregory. Graduando de Psicologia na UnB e estudante de Canto Lírico na Escola de Música de Brasília. Tem se dedicando ao repertório de tenor ligeiro. Atualmente faz pesquisa no departamento de Psicologia Escolar e no Laboratório de Psicologia Cognitiva. Apaixonado por História da Psicologia e Psicanálise, escreve poemas e ama sua religião católica ortodoxa.

Reni Elisa da Silva. Graduanda em Psicologia na UnB, ama músicas, a vida e as pessoas. Minha frase preferida é: “A vida é aquilo que acontece enquanto você está planejando o futuro” (John Lennon).

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Macgregory, J. & da Silva, R. E. (2022, 26 de abril). Cantus Malus: o que o processamento auditivo tem a ver com minha desafinação vocal?. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2022/04/26/cantus-malus-o-que-o-processamento-auditivo-tem-a-ver-com-minha-desafinacao-vocal

4 comentários em “Cantus Malus: o que o processamento auditivo tem a ver com minha desafinação vocal?

  1. Aline Responder

    Muito bom! Abriram uma outra perspectiva sobre uma hipótese de TPAC que estou investigando. Obrigada!

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