Imagine você acordando em uma ilha paradisíaca, ainda com os olhos meio fechados de sono, caminha em direção a janela da cabana para ver como está o dia. Quando você abre a janela percebe algo estranho, sua visão está bem embaçada, impossibilitando ver mais que poucos metros de distância, as cores sumiram, sobrando só o preto, branco e tons de cinza, a luz do dia parece extremamente forte, causando dor, seus olhos parecem se mover involuntariamente, quase como uma luta a tudo isso e você só consegue pensar em uma coisa – Pelo amor de Deus, alguém fecha essa janela. Essa situação toda pode parecer um pesadelo para alguém que tem a visão plena, porém para muitos habitantes de uma pequena ilha chamada Pingelap esse é o comum, pois eles nasceram com uma condição visual.
O atol de Pingelap, fica localizado no Pacífico Sul, na Micronésia, e ficou muito conhecido a partir de 1997 como a ilha dos daltônicos, por conta do livro de mesmo nome, do escritor, professor e neurologista Oliver Sacks. Esse apelido é devido a um peculiar histórico genético que a ilha possui, onde um percentual bem alto da população, cerca de 10%, possui uma característica conhecida como acromatopsia, uma deficiência visual bem rara, que no resto do mundo, segundo as estimativas, acomete 1 em cada 30.000 pessoas.
Antes de explicar o que é a acromatopsia, acho que vale a pena dar uma revisada sobre o que são genes e o que eles têm a ver com o DNA. Genes nada mais são do que seguimentos de uma molécula de DNA. São responsáveis pelas características hereditárias e considerados a unidade fundamental da hereditariedade. Cada gene é composto por uma sequência específica de DNA que contém instruções para a produção de proteínas que desempenham funções especificas no corpo ou RNA. A maioria dos genes estão contidos dentro dos cromossomos, que são, de forma simplificada, grandes sequências de DNA aglomerado.
Para ficar mais simples o entendimento, podemos fazer a seguinte analogia, o DNA é como um grande manual de todas as suas características físicas e como cada parte do seu corpo funcionar, mas esse manual é formado por pequenas peças, os genes. Como em um quebra-cabeça, essas peças costumam ficar agrupadas por páginas. Essas páginas são os cromossomos e em sua maioria existem em dupla, onde as duas estão relacionadas às mesmas instruções desse manual. Uma página é herdada da mãe e a outra do pai, cada uma das peças dentro de uma página possuem uma correspondente cópia na página “irmã”, chamamos essas duplas de genes de alelos. Para expressar alguma característica ou função por vezes é necessária apenas uma das cópias das peças desse manual. Portanto, cada Alelo desses podem possuir traços dominantes ou recessivos, sendo que é necessário apenas um dos alelos para um traço dominante e para traços recessivos são necessários que os dois alelos apresentem a mesma característica.
Agora, voltando à alteração clínica: a acromatopsia de origem genética é uma condição rara que se caracteriza pela distrofia da retina do olho, onde os cones (estruturas responsáveis pela tradução das informações de cor do espectro luminoso) se formam com problemas ou nem chegam a se formar devido a mutações genéticas. Essa deficiência visual possui caráter autossômico recessivo, ou seja, o pai e a mãe precisam ter o mesmo gene de traço recessivo com a mutação e o filho precisa herdar esse gene dos dois e são genes que não então relacionados ao cromossomo de determinação do sexo. Devido a raridade da condição ainda existem poucos estudos sobre ela, mas atualmente existe o conhecimento de seis genes que ao sofrerem mutações causam a acromatopsia (ATF6, CNGA3, CNGB3, GNAT2, PDE6C e PDE6H). A acromatopsia congênita também é conhecida como daltonismo total, mas vale ficar claro que são condições diferentes. O daltonismo na quase totalidade dos casos está relacionado ao cromossomo X, um cromossomo de determinação de sexo. Portanto, homens, que só possuem um cromossomo X, são muito mais afetados pelo daltonismo do que mulheres. Essa situação já não ocorre na acromatopsia, homens e mulheres são afetados na mesma proporção.
Os sintomas da acromatopsia são os mesmos citados na ilustração que iniciou o texto: visão reduzida (cerca de 10% da visão de uma pessoal sem a deficiência), ausência da visão de cores, fotofobia, desconforto com luzes muito intensas, como a luz do dia e, por último e de forma menos comum, nistagmo (tremor involuntário dos olhos). Diferentes de outros distúrbios visuais, a acromatopsia não é progressiva; sendo assim não piora com o tempo.
Existem basicamente três tipos de acromatopsia: (1) a total ou típica, em que o indivíduo não percebe nenhuma das cores; (2) a parcial ou atípica, em que o indivíduo consegue perceber poucos tons de azul pois os únicos cones não danificados são os responsáveis por traduzir a informação de ondas curtas (ressalva: esse tipo de acromatosia possui herança recessiva ligada ao cromossomo X, o que o torna muito mais comum entre os homens, assim como no daltonismo comum); (3) o terceiro e último tipo é a acromatopsia adquirida, que ocorre em função de alguma lesão cerebral (traumas, tumores e infecções), sendo esse tipo extremamente raro.
OK, mas então por que a ilha Pingelap possui tantas pessoas com essa condição rara quando comparada ao resto do mundo? Para descobrir a resposta dessa pergunta precisamos voltar na história da ilha. No ano de 1775, a região onde a ilha se encontra foi devastada pelo tufão Lengkieki, o que acabou reduzindo a população da ilha para apenas 30 pessoas. Um dos sobreviventes desse tufão foi Nanmwarki Mwahuele, que muito provavelmente possuía um dos genes recessivos mutados que podem causar a acromatopsia, pois entre as pessoas mais velhas na ilha que possuem a disfunção, todas possuem ele como ancestral comum. Além desse fator da redução da população, a ilha geograficamente já é bem isolada do resto do mundo, aliado a crenças religiosas que não veem com bons olhos a relação com estrangeiros. Esses fatores fazem com que hoje a ilha tenha uma variabilidade genética muito baixa. Assim, é fica fácil imaginar que com muitas uniões entre parentes ao longo do tempo, cada vez mais indivíduos nasceram portadores do gene e como consequência a probabilidade de pessoas surgirem com a disfunção cresceu também. Quanto mais tempo a ilha se manter isolada geneticamente, maior é a tendência do número de portadores do gene causador da disfunção visual crescer, por isso a ilha está desbotando, pois quanto maior o número de pessoas que não percebem as cores, mais abstrato e sem sentido esses conceitos vão se tornando.
O desenvolvimento do campo da genética nos últimos anos, possibilitou diversos novos estudos e avanços relacionados a acromatopsia. Por ser uma condição muito rara, ainda existe muito a se descobrir. Ainda não existe cura ou tratamento, porém já existem óculos e lentes, além de outros equipamentos, que ajudam no dia a dia, tornando as dificuldades causadas pela acromatopsia mais brandas. O importante é saber que um portador dessa condição pode ter uma vida normal, apenas impossibilitados de exercerem funções que dependam principalmente da visão.
Referências
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Sobre o autor
Henrique Euzebio Alves. Graduando em Design na UnB, interessado em entender como a ciência, a arte e a ficção se entrelaçam na construção de novas realidades. Trabalha na maior parte do tempo em projetos gráficos, ilustrações e identidades visuais. Tem uma vontade crescente em trabalhar com o desenvolvimento de jogos.
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Alves, H. E. (2022, 28 de fevereiro). Pingelap: A ilha da Micronésia que está desbotando. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2022/02/28/pingelap-a-ilha-da-micronesia-que-esta-desbotando/