Pimentas, tatuagens e sadomasoquismo: entenda como nosso cérebro nos transforma em adeptos da dor
Você gosta de pimenta? Mesmo sabendo que pessoas já morreram comendo elas?! Que coisa irracional! Bom, talvez até seja, mas só em parte. Afinal, mesmo sendo um alimento desagradável, que faz lágrimas brotarem dos olhos e a língua queimar, a pimenta está há seis mil anos sendo domesticada por humanos e faz parte integral de diversas culinárias pelo globo. Mas nenhum mamífero, além de nós, gosta de comer pimentas fortes. E como poderiam? A capsaicina, o composto químico encontrado nas pimentas que causa sua ardência e picância, estimula em nós os mesmos receptores de dor que respondem ao calor. Ou seja, falar que sua língua está pegando fogo quando a come não é uma metáfora tão distante da realidade. Talvez, então, a pergunta não seja por quê, mas como alguns tipos de dor podem causar prazer em nós.
“Você não vale nada, mas eu gosto de você”
Tem pessoas que gostam da sensação física de serem tatuadas, que sentem prazer em realizar maratonas extenuantes, e até que se envolvem em práticas sadomasoquistas entre quatro paredes. À primeira vista, e para outras pessoas, essas atividades causam dor e, portanto, são aversivas. Afinal, a dor serve para nos alertar quando há perigo e ameaças reais ou potenciais. Mas ela não é a mesma para todos, ainda que em situações iguais. A dor é profundamente subjetiva, pois depende de fatores históricos, contextuais, psicológicos, genéticos e relacionais.
Pesquisas sobre dor crônica e aguda já desvendaram muito sobre essa constituição. A dor que sentimos é influenciada por pensamentos que temos sobre ela, expectativas quanto a sua causa, a antecipação ou familiaridade daquela dor, assim como por nosso estado emocional, o controle percebido que temos da situação, e até crenças pessoais sobre a própria capacidade de resistir a ela. Não somente, se estamos distraídos ou acompanhados por pessoas amadas, sentimos menos dor do que se estivermos prestando atenção na sensação. Esse conjunto de fatores interage para determinar a resposta do nosso cérebro e, por consequência, a quantidade de dor sentida.
O prazer, ao contrário, serve como um sistema de recompensa, sendo algo desejável e que motiva nosso comportamento de maneira positiva. Não é estranho, então, termos no senso comum as experiências de prazer e dor como opostas, e o estudo acadêmico delas tem primordialmente seguido esta ideia, pesquisando-as de forma separada. Por isso, pesquisas que investigam a relação entre dor e prazer são insuficientes, sobretudo as que se propõem a responder a pergunta em que estamos nos debruçando aqui. Porém, já foi constatada amplamente a semelhança da dor e do prazer quanto às vias químicas e estruturas neurais que as codificam. Um spoiler: são próximas como primas.
A intimidade neural entre dor e prazer
São mais de quinze áreas em comum que se ativam para o processamento de dor e prazer, entre elas: o córtex orbitofrontal (que codifica toques prazerosos e analgesia em casos de placebo), o núcleo accumbens (para recompensas monetárias e de drogas, assim como para o processamento da expectativa de dor) e o córtex pré-frontal lateral (ativado em casos de recompensas gustativas e respostas extremas à dor). Adicionalmente, há o envolvimento de neurotransmissores opióides e dopaminérgicos na codificação de ambas as experiências.
Essa proximidade curiosa pode permitir a experiência de prazer e dor ao mesmo tempo, e talvez explique, em parte, o efeito modulatório que um tem sobre outro. Em outras palavras, isso pode estar relacionado ao fenômeno amplamente documentado da diminuição do prazer em casos de dor e, de maneira oposta, de recompensas induzirem a atenuação da dor. É uma relação tão íntima que durante o orgasmo algumas áreas que envolvem o processamento da dor se ativam, algo que é reafirmado por casos de mulheres sobreviventes de câncer que, após terem nervos seccionados para aliviar suas dores crônicas, perderam a capacidade de ter orgasmos.
Agora que já entendemos a ligação básica da dor e do prazer, devemos voltar à pergunta inicial: como a dor se transforma em prazer para alguns de nós?
A relação amorosa (e de BDSM) entre a dor e o prazer
Em 2019, Cara Dunkley, Craig Henshaw, Saira Henshaw e Lori Brotto da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver no Canadá, fizeram uma extensa revisão bibliográfica sobre o prazer em dores físicas, especialmente em relação a indivíduos que praticam “Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo” – ou, de maneira resumida, BDSM. Com isso, puderam teorizar de maneira bem fundamentada de que forma a dor pode se tornar uma experiência prazerosa, ou até ser sentida puramente como prazer.
A dor sentida durante BDSM, assim como no consumo de pimentas, confecção de tatuagens, e realização de exercícios fisicamente extenuantes, são dores consentidas e esperadas. Esse é um elemento crucial para diferenciar de outras dores, pois se sabe de antemão que não existe perigo real, e os sujeitos têm algum grau de controle sobre a situação. No caso do BDSM, fatores como os estímulos visuais, o contexto ambiental, o estado emocional, a conexão interpessoal, as memórias e a excitação sexual se combinam para criar o desejo e a receptividade à dor – algo importante, visto que pesquisas já demonstraram que quando se tem uma antecipação negativa da dor, a experiência dela é mais intensa.
A excitação, por ser prazerosa, serve como analgésico, alterando níveis de dopamina e ocitocina no cérebro, neurotransmissores que aumentam o prazer e o relaxamento. Quando a prática de inflição de dor se inicia, receptores sensoriais do sistema nervoso periférico, chamados nociceptores, enviam o sinal de que há um estímulo perigoso para o cérebro. Esse é um tipo de processamento chamado bottom-up (de baixo para cima).
As informações sobre o estímulo são levadas até o cérebro, onde se tem a regulação do nível dor e a criação de sinais que serão enviados pela medula espinhal para as células nervosas, com a mediação de endorfinas. Esse é chamado de processamento top-down (de cima para baixo), e é por onde os autores teorizam que a mudança de dor para prazer ocorre. Para isso, há o envolvimento de algumas estruturas como o córtex pré-frontal, que cuida de funções executivas, e a amígdala e o hipotálamo, responsáveis pelo processamento de emoções. O processamento top-down, portanto, perpassa por áreas relacionadas a nossas experiências pessoais e nosso estado emocional, o que influencia os sinais enviados e, por consequência, a própria experiência da dor.
Assim, é possível que a dor seja interpretada como prazer e sentida como tal, ou então percebida realmente como dor, mas atenuada e recompensada por hormônios – como a ocitocina – e neurotransmissores – como a dopamina, a endorfina, os opióides e os endocanabinoides. É possível que também haja diferenças individuais na sensibilização dos nociceptores, os receptores da dor, seja por questão genética ou por habituação e aprendizagem por meio do emparelhamento da dor com a excitação sexual.
O valor da dor
Por mais que consigamos entender melhor agora como ocorre esse processo de transformação da dor em prazer, são extremamente variáveis os motivos por trás da busca por esse tipo de sensação. No caso do BDSM, estudos encontraram que, apesar do estresse fisiológico, há um alívio do sofrimento psíquico após a prática. Para atletas, a adrenalina produz um estado de consciência alterado, além de serem recompensado também por troféus e medalhas no caso de competições. Já para os apaixonados por pimenta, pode estar relacionado com o fato do alimento ajudar a pressão sanguínea e ter efeitos antimicrobianos.
A dor também pode ser desejável por criar um contraste de sensações que intensifica o sentimento de prazer, por ser recompensada por ser desafiadora, causando sentimentos de orgulho e realização pessoal, além de ajudar quanto ao estresse da vida diária, visto que coloca a pessoa em contato com o presente. Alguns cientistas enfatizam também o valor evolutivo do prazer pós-dor, como forma de ajudar seres humanos a lidarem com as consequências imediatas da sensação.
Não sabemos perfeitamente o porquê, e apenas começamos a entender como. Ainda é insipiente a literatura sobre dor como uma experiência positiva, mas é uma área de grande relevância, pois pode possibilitar novas formas de tratamento farmacêutico, médico e psicológico para pacientes com dor aguda ou crônica, melhorando seu bem-estar.
Então, se você gosta de alimentos que queimam sua língua – metaforicamente -, ou adora sentir uma agulha com tinta perfurar sua pele, fique feliz! Isso faz parte da riqueza cultural e genética da nossa espécie.
Referências
Dunkley, C. R., Henshaw, C. D., Henshaw, S. K. & Brotto, L. A. (2019). Physical pain as pleasure: A theoretical perspective. The Journal of Sex Research, 0(0), 1-17. https://doi.org/10.1080/00224499.2019.1605328
Gorman, J. (2010, Setembro 20). A perk of our evolution: Pleasure in pain of chilies. The New York Times. https://www.nytimes.com/2010/09/21/science/21peppers.html
Gorvett, Z. (2015, Novembro 17). Por que alguns tipos de dor causam prazer? BBC. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151127_vert_dor_prazer_fd
Leknes, S., & Tracey, I. (2008). A common neurobiology for pain and pleasure. Nature, 9, 314-320. https://doi.org/10.1038/nrn2333
Schiffman, H. R. (2005). Sensação e percepção (5ª ed.). Rio de Janeiro: LTC.
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Sobre a autora
Marina Rangel de Lima. Gosto de escrever histórias, tomar café sem açúcar, e fazer carinho no meu par de gatos rajados. Entrei na Psicologia com grandes sonhos de salvar o mundo, vi que tanto eu era menor, quanto o mundo era maior do que eu pensava. Essa experiência me deu combustível para explorar novos espaços, e eventualmente me tornou militante, algo que me aproxima diariamente da minha eterna paixão pela potencialidade humana que existe em cada um de nós.
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de Lima, M. R. (2022, 28 de fevereiro). Como algumas dores causam prazer? Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2022/02/28/como-algumas-dores-causam-prazer/