Eu percebo. Tu percebes. Eles percebem…inclusive diferentes seres vivos percebem, e de diferentes formas. Assim como nós, outros animais precisam interagir com o ambiente e outros seres. Para essa tarefa, eles utilizam diferentes sentidos. Alguns são parecidos com o nosso jeito de “ver” (mas também ouvir, tocar, cheirar… sentir) a vida e outros são formas que nem imaginamos ser possível.
Você já pensou como seria se comunicar com seu amigo a partir de um choque elétrico recíproco? Ou conseguir “ver” a temperatura subir da pessoa que você ama, sabendo que isso é porque ela está ficando quente pelo fato de ver você (ui!)? Ou então conseguir se localizar num local escuro apenas emitindo som ou identificar seu amigo a quilômetros de distância? E quem sabe conseguir ir do Rio Grande do Sul até o Amazonas de bike sem usar nenhum GPS ou pista visual para ajudar? Pois bem, isso e mais um pouco é a rotina para muitos animais que já ouvimos falar, mas nem temos ideia de como eles percebem o mundo.
Alguns animais como certos peixes, tubarões, arraias (Figura 1) e até mesmo ornitorrincos (aqueles simpáticos mamíferos que aparentam ter saído de um desenho australiano) possuem a capacidade de eletrorrecepção. Ou seja, conseguem localizar parceiros e presas por meio da percepção do campo elétrico presente no meio em que estão. Além de perceberem esse campo elétrico, alguns peixes e arraias conseguem gerar uma descarga elétrica, e a partir de suas modificações de acordo com o ambiente, utilizam disso para “enxergarem” em ambientes turvos, onde a visão não ajudaria muito! Essas descargas servem também para a comunicação com outros animais da mesma espécie. Isso é possível pois eles possuem um órgão elétrico chamado eletrócito, que é modificado a partir de células nervosas ou musculares, permitindo criar um campo elétrico nas proximidades. Isso é mais interessante do que ter o poder de visão de raio-x, não?
Já no quesito “ver” a temperatura, algumas serpentes possuem orifícios localizados perto dos olhos e da narina, chamadas de fosseta loreal (Figura 2), que permitem captar ondas de infravermelho. Assim, a partir da integração de dois sinais sensoriais distintos (visão e temperatura) em uma região neural chamada tectum óptico (Figura 3), esses répteis conseguem identificar presas ou até mesmo o crush “serpentístico” de longe, pela variação de temperatura deles comparado ao meio.
Sabemos que submarinos utilizam o sonar/radar para localizar objetos no fundo do oceano, assim como golfinhos no ambiente aquático e morcegos, no terrestre, utilizam da ecolocalização para se guiarem no ambiente em que vivem (Figura 4). As ondas de som (mais precisamente o ultrassom) produzidas viajam a cerca de 340 metros por segundo no ar. E são utilizadas da seguinte forma: os animais emitem um disparo de ondas para uma certa direção e avaliam as alterações que ocorreram tendo como referencial o sinal que enviaram. Assim como comparar expectativa e realidade, formam uma “imagem” mental que lhes propiciam identificar o que os cerca quando a visão possui algum empecilho ou quando em local de pouca incidência de luz, por exemplo.
É provável que você já tenha assistido ao filme “Procurando Nemo” e se lembre de uma cena em que aparece um grupo de tartarugas migrando em uma corrente oceânica (Figura 5). Nela, é retratada uma característica marcante das tartarugas que é a migração. Isso também ocorre com muitas aves que migram durante meses ao longo do ano. Para isso, esses animais se guiam pela magnetorrecepção. Isso significa que eles conseguem se guiar pelo campo magnético da Terra (Figura 6). Isso mesmo, e olha que eles nem possuem um sistema digital de GPS integrado! Eles se guiam conforme uma bússola e partir disso percorrem longas distâncias, não se perdendo caso percam a placa de “vire à esquerda em 5 km”! Em aves, a fisiologia que permite esse “superpoder” já foi mais estudada do que em tartarugas. O que se sabe é que isso provavelmente é possível devido a receptores compostos por magnetita presentes nos olhos e no bico, no caso das aves. Um ponto muito interessante é que estudos recentes mostram que essa capacidade está relacionada a física quântica, com um mecanismo muito requintado por trás!
Assim, tão notável como as diferentes formas com que cada um de nós percebe o mundo, é ter uma pequena ideia de como outros seres vivos também o fazem e de maneiras que parecem ter saído de uma história em quadrinho. O fato é que a evolução moldou as formas como os serem utilizam a informação sensorial do ambiente de maneiras muito diferentes. O entendimento desses “superpoderes” dos animais pode nos ajudar a entender os mecanismos por trás da interação dos organismos com os meios que os cercam, assim como nossos próprios sentidos.
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Sobre o autor
Pedro H. Coelho-Cordeiro. Biólogo e mestrando em Neurociências pela Faculdade de Saúde da UnB. É apaixonado pelos mistérios do sistema nervoso (tanto de humanos quanto de animais) desde muito tempo. Ama andar de bike por Brasília e ler livros científicos no seu tempo livre.
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Coelho-Cordeiro, P. H. (2021, 9 de dezembro). O mundo segundo os X-Animais: superpoderes da percepção. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/12/09/o-mundo-segundo-os-x-animais-superpoderes-da-percepcao/