A onda psicodélica: a viagem do recreativo ao terapêutico

Olá, seja bem-vindo! Gostaria de tomar uma xícara de chá? Camomila ou cogumelo? Assustou? Vamos começar novamente, com um assunto mais tranquilo dessa vez: tipo drogas alucinógenas. Tecnicamente, drogas são substâncias capazes de causar alterações no funcionamento do nosso organismo, sejam elas benéficas ou não. Alucinógeno é um tipo de droga que possui como principal característica a capacidade de causar alterações na percepção e na consciência. Algumas são derivadas de plantas, como a ayahusca, outras de fungos, conhecidos como “cogumelos mágicos”. Existem exemplos sintéticos, como a dietilamida do ácido lisérgico, conhecida como LSD.

Figura 1: Alucinógenos alteram nossa percepção e consciência. Imagem de T. H. Jensen por Pixabay.

Talvez a clássica combinação de um chazinho e uma leitura não seja o ideal para este caso, por isso fizemos uma playlist sobre o tema para te acompanhar nessa viagem!

Psilocibina e LSD

Inicialmente vamos nos concentrar sobre dois exemplos de alucinógenos: a psilocibina, produzida naturalmente por cerca de 200 cogumelos diferentes, e o LSD, sintetizado a partir de um fungo que ataca o centeio, sendo um dos alucinógenos mais potentes conhecidos. Ambos costumam ser utilizados por via oral, com início dos efeitos sendo sentidos na primeira hora. O tempo de ação é mais variado, para os cogumelos a duração dos efeitos é de 3 a 6 horas, para o LSD, varia entre 8 e 12 horas, com relatos ainda mais duradouros, conforme demonstrado pelo PhD em Biomedicina Friederike Holze e colaboradores. Comparadas com outras drogas, ambas são bastante seguras: praticamente não causam dependência e relatos de mortes são raríssimos, segundo evidências apresentadas no livro Drugs and Society publicado em 2006 por Jefferson M. Fish.

Figura 2. Tipo de cogumelo de onde é extraída a pscilocibina. Imagem de Shutterbug75 por Pixabay.

O mecanismo de ação tanto da pscilobina quando do LSD é pouco compreendido, mas provavelmente envolve neurotransmissores importantes, como serotonina e dopamina. É possível que essas drogas causem uma diminuição na atividade do tálamo, uma estrutura que funciona como uma central de gerenciamento de informações, recebendo sinais do corpo e enviando para o restante do cérebro. Com o seu funcionamento diminuído, informações vindas dos órgãos dos sentidos (codificados como cheiros, gostos, cores, formas etc.) são distribuídas de forma truncada. O córtex cerebral, também afetado pelas substâncias, interpreta essas informações e envia comandos como: “pegue este objeto”. Antes de ir para os músculos, esse sinal passa novamente pelo tálamo, e aí já viu… Os alucinógenos, na verdade, raramente causam alucinação, ou seja, ver ou sentir coisas que não são reais. Geralmente o usuário tem sua percepção distorcida, porém baseada em estímulos reais e presentes, como demonstrou o pesquisador Ian Joyce em 2017.

Mas como a pessoa se sente ao fazer uso de alucinógenos? Resposta fácil? Não sei. Cada um vai experenciar uma trip diferente. Sabe aquela história do “será que meu vermelho é igual ao seu vermelho?” Podemos usar o mesmo nome (a mesma “etiqueta verbal”) para uma experiência, mas isso não significa que a minha experiência seja igual a sua. Sob efeito de LSD uma voluntária descreveu as árvores como tendo uma cor neon e que, ao fechar aos olhos, ficava muito quente. O que, exatamente, ela vivenciou? Não sabemos. Além disso, a expectativa tem um papel muito importante nas experiências percebidas, estando o indivíduo ou não sob efeito de qualquer substância. De qualquer forma, os relatos borbulham na internet e costumam englobar sensação de desconexão com o corpo físico, alterações perceptuais de tempo e espaço, foco dificultado, sinestesia (ver sons, escutar gostos, cheirar cores…) e alterações de humor, como euforia e ansiedade. Os cogumelos mágicos, devido a sua tradição de uso ritualístico, costumam ser associados a experiências transcendentais e espirituais. Já os efeitos do LSD, mais utilizado num contexto recreativo, não costumam receber esses rótulos. Portanto é importante levar em consideração as expectativas e o ambiente onde o consumo acontece. 

Ayahuasca e a indústria espiritual

Já que tocamos no assunto de uso ritualístico, vamos apresentar outra droga alucinógena. A ayahuasca, chá feito a partir do cipó raro encontrado na Amazônia, Banisteriopsis caapi, e das folhas do arbusto Psycotria viridis, é utilizada por diversos povos tradicionais na América do Sul há milhares de anos com extrema parcimônia, dado o seu caráter religioso. Porém, atualmente existe uma demanda mundial pelo chá enteógeno (aquele feito de plantas psicoativas utilizadas em ritualísticas espirituais), demanda esta que simplesmente não condiz com a realidade concreta da coleta dos insumos e disponibilidade ecológica.

Figura 3. Preparo da Ayahuasca. Retirada de Wikimedia.

Como não podia ser diferente no mundo do capital, o que começou como importante mudança cultural e de descriminalização corresponde agora a uma ameaça cultural de epistemicídio em diversas tribos sul-americanas. A indústria espiritual também colocou em risco de extinção o cipó e o arbusto que agora são vendidos a centenas de dólares ao redor do mundo. Em entrevista para a plataforma Outras Mídias em 2016, o xamã Pianko disse que “A ayahuasca não é uma piada. O homem branco quer patentear nosso ritual, quer usar ele para ganhar mais dinheiro, mas o mundo espiritual não está a venda”. A onda econômica dos psicodélicos consiste em uma ameaça real com o uso indiscriminado do chá. Também em entrevista à redação Outras Mídias, a chefe da tribo Yawanawá, Biraci Brasil, afirma: “Lutamos uma batalha diária pela preservação da nossa cultura. A ayahuasca não é só uma planta, ela é nossa ancestralidade”. Além disso, o uso indiscriminado associado à falta de controle sobre pureza do chá por povos não originários coloca em risco o produto que agora vendem: a ayahuasca tem forte potencial neurotóxico e, se preparada de maneira incorreta ou misturada com outras substâncias, pode levar à morte.

Potencial clínico dos alucinógenos

Nas últimas décadas verifica-se um significativo aumento na incidência de doenças mentais na população mundial, especificamente no que diz respeito a transtornos depressivos e de ansiedade. Esse aumente vem associado a uma ampla utilização de antidepressivos e outras tecnologias de neuromedicação. Nessa onda, cresce também a utilização de diversas substâncias psicoativas com caráter terapêutico, incluindo a maconha, cocaína, álcool e até mesmo o chocolate. A essa lista podemos adicionar também os psicodélicos.

Novos estudos vêm sendo conduzidos com o uso da psilocibina, mas não sobre seus efeitos como substância recreativa, e sim sobre seu potencial clínico como tratamento para condições em saúde mental! Os pesquisadores Jeremy Daniel e Margaret Haberman em 2017 analisaram os resultados do alucinógeno em pacientes com diferentes transtornos mentais. Pacientes com humor depressivo ou ideações suicidas e pacientes diagnosticados com transtornos de ansiedade, após administrações controladas da droga, demonstraram melhora significativa em seus quadros: seja no humor, atitudes e comportamento ou na redução da ansiedade. Pessoas com histórico de dependência de álcool e de tabaco também apresentaram resultados promissores quanto ao tempo de abstinência. Entretanto, embora a psilocibina seja uma substância com eficácia potencial alta, segundo os estudos, é importante ressaltar que a validade dessas pesquisas não pode ser encarada como um dado universal, visto que a amostragem destes é baixa e sequer podem ser conduzidos em populações maiores.

A partir disso, se torna imprescindível ressaltar que o estigma moral que permeia o uso de psicodélicos provoca um impacto negativo no que concerne à políticas de promoção a saúde mental. É possível combinar ciência e tecnologia em prol de interesses públicos no campo da saúde mental, mas aí temos dois desafios: (1) a criminalização e o estigma social que impedem a realização de mais pesquisas sobre o uso clínico de psicodélicos; e (2) a necessidade de um rigor científico e epistemológico que respeite a pluralidade cultural e narrativas de povos tradicionais sem vistas ao lucro e exploração infinita do capital. Caso contrário, ao invés de pesquisas que combinem interesses privados e públicos em saúde e promovam saúde, a sociedade também necessitará encomendar pesquisas sobre devastação ambiental e impactos da destruição de culturas milenares.

Drogas, legais ou ilegais, podem causar danos e requerem cuidados. Buscando minimizar os riscos, quando em uso terapêutico a dose é controlada e profissionais da saúde acompanham o tratamento. De qualquer forma, caso você ainda não saiba, psilocibina e LSD são de uso proibido no Brasil, o que dificulta a pesquisa e uma discussão honesta sobre o tema e seu potencial terapêutico. Em tempos de negacionismo e conservadorismo moral, modificações nesse cenário parecem improváveis. De qualquer forma, isso não impede o comércio e uso dessas ou de outras substâncias recreativas.  Com a falta de regulação e dificuldade no controle do risco, os usuários podem estar consumindo substâncias adulteradas e potencialmente mais perigosas.  A redução de danos dos alucinógenos é similar à de outras drogas. Em usuários com históricos familiares ou com predisposições a doenças mentais, alucinógenos podem atuar como um gatilho para uma crise ou agravo da condição. Cuidados com o ambiente, companhia, fornecimento e condições prévias de saúde são profundamente importantes para aqueles que optarem por utilizar as substâncias, quer seja em um contexto religioso, espiritual ou recreativo.

Referências

Costa, M. C. M., Figueiredo, M. C., & Cazenave, S. O. Santos. (2005). Ayahuasca: Uma abordagem toxicológica do uso ritualístico. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), 32(6), 310-318. https://doi.org/10.1590/S0101-60832005000600001

Couto, P. S. T. (2017). Psilocibina: Perspetiva sociopolítica e potencial terapêutico na adição (dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa). Recuperado em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/42448/1/PaulaTCouto.pdf

Daniel, J., & Haberman, M. (2018). Clinical potential of psilocybin as a treatment for mental health conditions. The Mental Health Clinician7(1), 24–28. https://doi.org/10.9740/mhc.2017.01.024

Fish, J. M. (Ed.). (2006). Drugs and society: US public policy. Rowman & Littlefield. 

Gil, G. D. F., Gimenez, J. V., & de Sauez, C. C. B. (2014). Drogas alucinógenas e sua detecção laboratorial. Atas de Ciências da Saúde (ISSN 2448-3753)2(3). 

Joyce, I. (2017). A comparative literature survey of psilocybin and LSD-25 metabolism. 

Holze, F., Duthaler, U., Vizeli, P., Müller, F., Borgwardt, S., & Liechti, M. E. (2019). Pharmacokinetics and subjective effects of a novel oral LSD formulation in healthy subjects. British Journal of Clinical Pharmacology85(7), 1474–1483. https://doi.org/10.1111/bcp.13918

Lopes, Marina. (2016, novembro 5). A ayahuasca ameaçada pelo comércio espiritual. OutrasMídias.net. Recuperado em https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-ayahuasca-ameacada-pelo-comercio-espiritual/

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Sobre as autoras

Ana Isabel Pereira. Química frustrada, buscando na Psicologia a minha vocação. Se não for isso vou atrás da Matemática, História, Farmácia ou sei lá. O importante é continuar aprendendo, sempre! Bombeira militar, completamente apaixonada pela instituição que garante meu sustento e satisfação profissional. E membro integrante e ativa de uma família profundamente amada. Se eu sigo estudando, e sonhando num mestrado, é só pela teimosia mesmo…

Lalesca Christine Medeiros de Sousa. Infelizmente desde sempre curiosa demais e entusiasta da academia. Professora de ensino bilíngue para pagar as contas, ativista por direitos humanos e estudante em busca da dupla diplomação em Ciências Sociais e Psicologia para concretizar um trabalho aplicado à realidade e transformador. Atualmente envolvida em pesquisas nas áreas de capitalismo, acumulação primitiva e trabalho feminino. 

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Pereira, A. I., & de Sousa L. C. M. (2021, 28 de setembro). A onda psicodélica: a viagem do recreativo ao terapêutico. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/09/28/a-onda-psicodelica-a-viagem-do-recreativo-ao-terapeutico/

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