Um apagão em minha mente: a imaginação cega das pessoas com afantasia

Antes de prosseguir neste artigo, feche os olhos e pense em uma praia…

Se você mora em uma área litorânea, ou já visitou uma praia que te marcou muito, provavelmente você visualizou este lugar específico em sua mente. Da mesma forma, se você nunca foi à praia, mas já viu na internet, em alguma revista ou televisão, provavelmente utilizou dessa lembrança para visualizar a praia em sua cabeça. Caso tenha conseguido atender a este comando em qualquer uma das duas situações, você acaba de experimentar um processo conhecido como imagem mental ou figura mental.  Isso significa que, assim como a maior parcela da população, você possui a capacidade de transformar informações que lhe foram previamente apresentadas como cenas, paisagens, rostos e objetos, e montar uma imagem em sua cabeça quase tão vívida quanto se estivesse sendo vista ao vivo, de frente para os seus olhos.

Para algumas pessoas, no entanto, esse comando no início do texto pode ser um verdadeiro filme de terror: eu mesma passei anos sem conseguir seguir comandos de mindfulness e nunca dormi contando carneirinhos, porque só de tentar pensar na cerca já me deixava ansiosa, o que dirá imaginar um carneirinho. Na minha mente, um breu total. Imaginar uma praia era igualmente difícil, não havia nem mesmo uma luz, ou um borrão: uma imaginação completamente cega.

Figura 1. Pessoas com afantasia não têm acesso às imagens mentais. Arte por AmyRightMeow, screenshot retirado de: https://www.youtube.com/watch?v=ewsGmhAjjjI.

O primeiro autor a relatar esse fenômeno em um trabalho foi Francis Galton, um cientista inglês, que realizou em 1880 um estudo quantitativo com 100 participantes a fim de verificar os diferentes níveis de vivacidade dos indivíduos ao descrever suas imagens mentais visuais. Desse total, entre 2,1 e 2,7% dos indivíduos relatou não conseguir visualizar absolutamente nada em suas cabeças, inclusive vários de seus colegas de trabalho e estudos. Galton relatou: “Para meu espanto, descobri que a grande maioria dos homens da ciência aos quais apliquei [as perguntas] pela primeira vez protestou que as imagens mentais eram desconhecidas para eles, e eles olharam para mim como fantasioso e fantástico ao supor que as palavras ‘imagens mentais’ realmente expressavam o que eu acreditava e que todos supunham o que elas diziam” (em tradução livre).

Apesar do interesse de Galton, e do primeiro relato sobre a incapacidade de “ver de olhos fechados”, esse tema ficou esquecido por muitos anos. Somente 135 anos depois, Adam Zeman, junto de outros 2 colegas da Universidade de Exeter na Inglaterra, voltariam a estudar esse relato e nomear esse fenômeno. A afantasia, também conhecida como imaginação cega, torna os indivíduos que a possuem incapazes de visualizar qualquer imagem em suas cabeças. Não há, então, prejuízo na forma como essas pessoas percebem o mundo, nem no reconhecimento dos objetos, cenas e rostos — como é o caso da Prosopagnosia, que você pode ler em outro texto deste blog. Isso quer dizer que uma pessoa com afantasia saberia reconhecer uma praia diante de seus olhos, e que, caso não estivesse em frente à imagem de uma praia e recebesse um comando como o do início deste texto, saberia descrever e explicar em fatos o que é uma praia, mas não seria capaz de experimentar nenhuma visualização em sua mente de uma — mesmo que tenha morado a vida inteira na frente do mar.

Figura 2. As várias formas que as pessoas podem conceber uma imagem mental, e, ao final, como as imagens são “projetadas na mente” de uma pessoa com afantasia. Vale lembrar que essa imagem é ilustrativa, e essas seis disposições não são as únicas maneiras possíveis de se visualizar com a mente: há um espectro da vivacidade das imagens mentais. Imagem adaptada do Google Imagens.

Estima-se que essa condição atinge cerca de 2,5% da população mundial, e boa parte das pessoas que a possuem nem imaginam que ela existe. Para pessoas com afantasia adquirida após uma lesão ou perda de partes específicas do funcionamento neural típico é clara a diferença entre o antes e depois da perda. No entanto, para aqueles com afantasia congênita — que formam a maior parte da parcela das pessoas que possui afantasia —, parece confuso entender que outras pessoas conseguem de fato imaginar imagens quando fecham os olhos.

A maioria dos participantes do estudo de Zeman realizado em 2015 relata que só se tornou consciente de sua condição durante sua adolescência e entrada na vida adulta, apesar de identificar momentos de dúvida ou confusão ao longo de sua vida, durante interações e relatos de outras pessoas. Eu mesma só descobri que as pessoas, de fato, não estavam usando metáforas quando pediam para imaginar objetos e cenas aos 21 anos (e ainda assim, é algo que me intriga muito). Para algumas dessas pessoas, essa descoberta pode ser bastante frustrante, causando um sentimento de incapacidade, ou de inferioridade nas relações — pelo fato de não conseguir se lembrar adequadamente do rosto de pessoas queridas.

Figura 3. Um mundo sem imagens mentais pode gerar frustrações. Arte por AmyRightMeow, screenshot retirado de: https://www.youtube.com/watch?v=ewsGmhAjjjI.

Apesar disso, indivíduos afantásicos, em geral, não possuem nenhum prejuízo na visão e reconhecimento de cenas visuais, ou em outros processos perceptuais como audição ou olfato. Também não foi encontrado, até então, nenhuma evidência de algum déficit na atenção ou memória relacionada à afantasia: na falta de imagens mentais, esses indivíduos compensam a formação de memórias através de dimensões verbais, matemáticas e atalhos mentais. Por isso, se você pedir a uma pessoa afantásica para descrever um objeto que ele reconheça, ou o rosto de uma pessoa querida, ela o fará, mesmo que não consiga selecionar em seu “arquivo mental” uma imagem correspondente. Os quadros cartunizados desta postagem foram todos feitos por uma artista com afantasia — a AmyRightMeow. Ela relata em suas redes e mídias sociais que a falta de imagens visuais dificulta a elaboração de alguns trabalhos, mas não a desestimulou de continuar tentando e insistindo naquilo que gostava de fazer para além da sua condição.

Figura 4. A afantasia e as artes. Arte por AmyRightMeow, screenshot retirado de: https://www.youtube.com/watch?v=ewsGmhAjjjI.

A dimensão qualitativa dos estudos existentes sobre afantasia — como os de Zeman — nos mostra um pouco do impacto dessa condição na vida dos indivíduos, mas ainda não abarcam a complexidade da condição e são difíceis de serem validados e replicados. A maioria dos estudos trata especialmente de revisões bibliográficas, estudos de caso e relatos dos participantes, como é o caso do principal instrumento de identificação da Afantasia: o  Vividness of Visual Imagery Questionnaire – VVIQ. Atualmente alguns neurocientistas estão tentando utilizar técnicas de neuroimageamento para encontrar possíveis alterações nas redes neurais que expliquem a afantasia, como o uso de ressonância magnética funcional  ou a eletroencefalografia, mas esses experimentos envolvem paradigmas de observação ainda pouco estabelecidos. A maioria desses estudos está acessível na internet na plataforma Aphantasia Network, criada por Tom Ebeyer: nome de um dos primeiros voluntários para o estudo de Zeman em 2015. Infelizmente não há tradução dos textos para o português — mas ainda há tempo para mudarmos essa realidade!

Essa dificuldade de controlar um ambiente experimental, mensurar de maneira objetiva, e excluir a subjetividade dos participantes tem sido o maior dos empecilhos: como podemos saber que as pessoas — fantásicas e afantásicas — não estão apenas descrevendo de maneira diferente aquilo que visualizam em sua mente? Como mensurar os diferentes níveis de imagem mental para diferentes pessoas? Quais outras funções cognitivas, afetivas e/ou comportamentais podem estar associadas à afantasia? São dúvidas como essas que têm movimentado nos últimos seis anos o interesse de neurocientistas, e que intrigam nós, afantásicos. Ainda não há nada certo, mas não é preciso nem usar imagens mentais para ver como essa área tem um futuro muito interessante e rico a caminho!

E aí? Você acha que vai ver o mundo de maneira diferente daqui pra frente? Já havia parado pra pensar se o que passa na sua mente é realmente tão parecido com o que passa na mente das pessoas ao seu redor? Ficou curioso e quer conhecer e explorar mais esse e outros assuntos de percepção? Não perca então os próximos conteúdos daqui do Blog e do Podcast “Eu percebo”, disponível no Spotify.

Para saber mais

Legendas: clicar em Detalhes > Legenda/CC > Traduzir automaticamente > Português.

Referências

Galton, F. (1880). I.—Statistics of mental imagery. Mind. 19, 301-318.

Ross, B. (2016). Aphantasia: How it feels to be blind in your mind. Facebook. Recuperado de: https://m.facebook.com/nt/screen/?params=%7B%22note_id%22%3A2862324277332876%7D&path=%2Fnotes%2Fnote%2F&_rdr

Zeman, A., Dewar, M., & Della Sala, S. (2015). Lives without imagery – congenital aphantasia. Cortex. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2015.05.019

Zeman, A., Dewar, M., & Della Sala, S. (2015). Reflections on aphantasia. Cortex. http://dx.doi.org/10.1016/j.cortex.2015.08.015

Zimmer C. (2015). Picture this? Some just can’t. New York Times. Recuperado de: https://www.nytimes.com/2015/06/23/science/aphantasia-minds-eye-blind.html

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Capa do post: adaptado de pixabay.com.


Sobre o autora

Renata Ramos de Souza. Graduanda em Psicologia (UnB), apaixonada por Neurociências e Psicobiologia. Possui extensas habilidades em edição de imagem e produção de conteúdo; e um grande amor por filmes e séries de suspense, horror e terror e a Psicologia envolvida neles.

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Souza, R. R. (2021, 28 de junho). Um apagão em minha mente: A imaginação cega das pessoas com afantasia. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/06/28/um-apagao-em-minha-mente-a-imaginacao-cega-das-pessoas-com-afantasia/

6 comentários em “Um apagão em minha mente: a imaginação cega das pessoas com afantasia

  1. Lorrany Responder

    Meu irmão está passando por isso, ele consegue pensar mas não consegue imaginar as imagens na cabeça dele eu gostaria de saber isso pode melhorar?

    • Administrador Autor do postResponder

      Oi, Lorrany! Seu irmão irá conviver com essa característica de modo permanente.

  2. Helena Responder

    Eu também sou assim. Lembro-me os sonhos por sons, sentimentos, acontecimentos e emoções. Nada de imagens, ou imagens muito apagadas. Costumava dizer que tenho uma alma cega.

    • Administrador Autor do postResponder

      Oi, Helena! Obrigado por contribuir falando da sua história. Sua metáfora, “alma cega”, é muito boa!

  3. Daniel Responder

    Descobri que tinha afantasia em 2021, com 31 anos.
    Eu fiquei a vida toda pensando que contar ovelhas pra dormir era uma metáfora ou algo do tipo.
    Não poderia imaginar que as pessoas realmente conseguem visualizar coisas na mente.
    Quando descobri que a maioria das pessoas realmente têm essa capacidade, fiquei chocado.
    É como descobrir que você é um super-herói, mas ao contrário. Ao invés de você ter um super poder, você descobre que quase todos têm um super poder, mas não você.
    Interessante descobrir que tem gente em Brasília que conhece essa condição. Já encontrei outras pessoas que se encontravam na mesma situação que eu me encontrava, vivendo assim, sem ideia de que outras pessoas podem visualizar usando a mente.

    • Estagiário Responder

      Daniel, gosto de pensar que é um super poder, especialmente quando penso que a quantidade de pensamentos intrusivos poderia ser muito maior se tivesse imagens mentais. Também acredito que o fato de não ter imagens mentais me deixou mais sensível pra outros sentidos e pra própria presencialidade. Certamente adoraria lembrar das coisas com imagens, mas acho que por saber que não verei mais aquilo, eu tento aproveitar ao máximo as imagens reais…

      Tentar mudar a perspectiva, né? E é até bom quando a gente encontra “um dos nossos” por aí, porque a gente aprende a ver com carinho o nosso super poder também! Quem sabe a gente não se encontra por aí, sucesso pra você! 🙂

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