Em 1986, enquanto trabalhava em uma equação matemática para a percepção, Donald teve que se sentar subitamente, havia entendido que não necessariamente percebemos a verdade, ele levou vinte anos para levantar essa ideia da cadeira. Usando Jogos Evolucionários e Algoritmos Genéticos, Donald Hoffman desenvolveu a “Teoria da Interface para a Percepção” (tradução livre). Ele propõe que percebemos o mundo como usuários da interface de um desktop com ícones em 3D.
Hoffman indica que as categorias perceptivas dos organismos são moldadas pela seleção natural de acordo com a solução mais satisfatória para problemas adaptativos, como alimentação, proteção e reprodução. No caminho evolutivo filogenético dos humanos, por exemplo, uma solução menos custosa para a visão foi usar as estruturas biológicas já existentes. Logo, uma retina com fotorreceptores escondida por trás de vasos sanguíneos e neurônios talvez não seria o ideal, mas assim está organizada. A seleção natural privilegia uma adaptação satisfatória entre a realidade e os problemas e não a veracidade por uma construção ou reconstrução da realidade para gerar soluções.
De forma geral, há um imediato incômodo quando a percepção não é associada à veracidade, pois dá a impressão que pode levar a falhas, o que realmente acontece. Hoffman conta que, durante os meses de agosto e setembro, o besouro joia macho voa para regiões áridas da Austrália em busca de uma parceira e encontra a mais bela e reluzente para a sua visão: uma garrafa de cerveja marrom! Uma verdadeira armadilha para essa espécie criada pela percepção de brilho depois da intervenção do lixo humano, que representa uma ameaça, pois as fêmeas não serão fertilizadas.
Sabendo disso tudo, Hoffman questiona-se: qual seria, então, a relação evolutiva entre a realidade e a percepção? Para responder essa questão, ele simulou, junto com alunos, jogos evolutivos com múltiplas gerações. Usando o recurso computacional dos algoritmos genéticos, eles programaram criaturas para perceber toda a verdade na realidade – realista ingênuo – ou parte dela – realista crítico – e outras para perceber nada da verdade, apenas a adaptação à realidade – usuário de interface. Mesmo com percepções iniciais bobas, algumas criaturas evoluíram e sobreviveram. Só que eles notaram que toda a geração de sobreviventes tinha programação genética para a função de fitness, ou melhor, de adaptação (tradução livre).
Em sua simulação, Hoffman assistiu a seleção genética pressionando a percepção evolutiva em encontro à adaptação, permitindo que ele pensasse em como a evolução molda a percepção humana de forma que perceber nada da verdade tenha menos custos e seja uma vantagem. Assim foi possível criar um modelo que abarque esses resultados dos jogos evolutivos virtuais para a realidade, o que ele chamou de Estratégia da Interface. Curiosamente, por outro lado, é mais comum hoje que pesquisas com rede neural artificial da visão computacional se baseiem no princípio de veracidade para as ações de estimar, recuperar e reconstruir os dados sensoriais.
Ainda assim, em 2019, Robert Prentner e Chris Fields publicaram artigo que relaciona questões ontológicas sobre percepção e inteligência artificial (IA) que problematiza essa conveniência. Eles compreendem que pesquisas em IA poderiam não responder a essas questões diretamente, mas traduzi-las em linguagens dentro da lógica e métodos computacionais. São otimistas ao destacar que formulação, implementação e observação de técnicas de modelagem computacional têm o potencial de lançar luz a sistemas biológicos que parecem caóticos, tal como a dinâmica biológica dos períodos refratários dos neurônios.
Para eles, a codificação não deve reproduzir a biologia, pois os aprendizados naturais e artificiais são diferentes. No entanto, o modelo computacional deve considerar essas propriedades estruturais biológicas. Os pesquisadores trabalharam com modelagem de redes neurais artificiais e seus aprendizados com a experiência e, ao fim, seus resultados relacionaram-se à Estratégia da Interface para a percepção, já que verificaram uma não semelhança entre o estímulo e o estado das redes perceptivas, mas sim uma associação probabilística entre o estímulo e a suas vantagens nos critérios de adaptação, a qual parece ter um papel proeminente no aprendizado para tarefas perceptuais. Enfim, ao usar algoritmos genéticos para a tarefa de percepção, Prentner e Fields observaram uma rede neural artificial para a percepção assimilando Estratégias de Interface.
O exemplo acima, do campo da IA, torna mais próxima a ideia de que a relação entre realidade e a percepção que acompanha o argumento da evolução não é o da verossimilhança. Segundo a teoria de Hoffman, ícones da interface para a percepção seriam moldados para a sobrevivência e o que importaria é a percepção das adaptações entre espaço e tempo objetivos e estados, ações e contextos, não a verdade. Da mesma forma que quando clicamos em um ícone do computador, não vemos a verdade dos campos eletromagnéticos e programações ali, o desktop mostra as informações que se adaptam e se organizam melhor aos nossos objetivos e aptidões individuais. Donald Hoffman compreende o tamanho estranhamento da percepção não ser tomada como verídica, parece que ele está falando que, se é apenas um ícone, não devemos nos proteger quando um carro em alta velocidade vier em nossa direção. Com a mesma seriedade que não deletamos levianamente um ícone do desktop, se um carro vier em nossa direção devemos levar a sério e esquivar. Do ponto de vista evolutivo, os símbolos do carro correndo embutidos no ícone moldam comportamentos válidos e vantajosos na seleção natural.
Para o pensamento de Hoffman, as Estratégias da Interface mapeiam o mundo externo durante as experiências perceptivas. O mundo percebido seria, portanto, uma estrutura de dados associada e corrigida pelas funções e informações de adaptação. De acordo com a metáfora do desktop, a percepção de um ícone confere uma estrutura de dados à interface para informar e estimular respostas comportamentais para a sobrevivência da espécie. Seria um modelo da realidade objetiva que não rejeita a complexidade das partículas atômica e subatômica dos objetos. Para o teórico, a natureza complexa da realidade objetiva ainda permaneceria um problema científico. Os ícones da interface escondem um mundo muito mais complexo, porém motivam comportamentos selecionados por suas vantagens durante a evolução.
Para um besouro joia macho, o melhor encaixe é a fêmea com o maior brilho e, infelizmente, ela é uma garrafa de cerveja na sociedade contemporânea. Sem a intervenção da limpeza, isso poderia levar à extinção dessa espécie, mas não diminui a vantagem do comportamento adaptativo de escolher a fêmea pelo brilho por gerações. A metáfora da interface aparece como um portal para o desenvolvimento do pensamento ontológico sobre percepção e realidade coerente com as evidências da evolução, não para finalizar a discussão científica acerca dessas experiências conscientes. Hoffman é categórico ao dizer que para a evolução, a grande recompensa é a reprodução, não a verdade.
Para saber mais
Referências
Hoffman, D. D., Singh, M. & Prakash, C. (2015). The interface theory of perception. Psychonomic Bulletin & Review, 22, 1480–1506. https://doi.org/10.3758/s13423-015-0890-8
Hoffman, D. D. (2009). The interface theory of perception: Natural selection drives true perception to swift extinction. In Dickinson, S., Tarr, M., Leonardis, A., Schiele, B. (editores). Object categorization: Computer and human vision perspectives. Cambridge University Press.
Mark, J. T., Marion, B. B., Hoffman, D. D. (2010). Natural selection and veridical perceptions. Journal of Theoretical Biology, 266, 504–515. https://doi.org/10.1016/j.jtbi.2010.07.020
Prentner, R. & Fields, C. (2019) Using AI Methods to Evaluate a Minimal Model for Perception. Open Philosophy, 2, 503–524. https://doi.org/10.1515/opphil-2019-0034
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Capa do post: Metáfora da interface. Adaptado de unsplash.com.
Sobre o autora
Rosana Lia de Souza Ferreira. Usuária assídua de interfaces, também identifica-se como uma futura ex-graduanda em Psicologia na Universidade de Brasília e como uma curiosa sem habilidades para fazer perguntas.
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Ferreira, R. L. S. (2021, 22 de junho). Evidências da percepção enquanto uma interface: A proposta computacional de Donald Hoffman. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/06/22/evidencias-da-percepcao-enquanto-uma-interface-a-proposta-computacional-de-donald-hoffman/