A esquizofrenia é um transtorno psicológico que altera de maneira severa a percepção e cognição do indivíduo. Ela atinge 1% da população brasileira, e a cada ano aproximadamente 50 mil novos casos são registrados. São característicos três tipos de sintomas: motores (imobilidade, hiperatividade, movimentos repetitivos), negativos (humor não modulado, pobreza de fala, apatia) e positivos (alucinações e delírios). A avaliação dos sintomas positivos é feita, principalmente, tendo como base o conteúdo e a estruturação do discurso do paciente. Estas alterações cognitivas são precedidas por àquelas de ordem sensorial. Então, por que não utilizar marcadores diagnósticos sensório-perceptivos?
A dificuldade está em detectar e mensurar eventos relevantes, associados ao quadro patológico, antes do agravamento dos sintomas positivos. Neste caminho, a equipe de pesquisadores liderada pela professora Maria Lúcia B. Simas (UFPE) propôs um interessante marcador visual a partir de pinturas de Salvador Dalí e Victor Molev. As obras selecionadas no trabalho deste grupo apresentavam o que é chamado de concatenação de formas. Este fenômeno é caracterizado pela percepção de um objeto, supostamente fictício, por meio de bordas de outros objetos menores numa mesma cena (Figuras 1 e 2).
O grupo de pesquisadores mensurou o tamanho das figuras, contidas nas pinturas selecionadas, que primeiro chamou a atenção dos participantes. Foram conduzidos dois estudos, em que pacientes diagnosticados com esquizofrenia perceberam primeiro objetos 1,5 e 3 vezes maiores do que os relatados por voluntários do grupo controle. Em um terceiro estudo, realizado com pacientes portadores de depressão maior, não foram encontrados alterações na percepção visual de tamanho.
Em suma, portadores de esquizofrenia têm uma seletividade alterada para objetos de grande porte em imagens que sofrem o efeito de concatenação de formas. É possível que este efeito esteja relacionado a uma maior sensibilidade ao contraste em frequências espaciais muito baixas. A partir dos resultados, foi sugerido que as pinturas de Dalí e Molev podem ser utilizadas como ferramentas auxiliares no diagnóstico precoce da esquizofrenia. Isto evitaria o agravamento dos sintomas e a eclosão do surto.
Afora o efeito de concatenação de formas, as obras de Dalí são conhecidas por imagens bizarras e oníricas, sendo referencias no movimento surrealista. É possível que as temáticas e a estética de suas telas tenham sido reflexo da esquizofrenia, da qual ele teria sido portador. Hoje, mais de 20 anos após sua morte, o pintor catalão tem a possibilidade de contribuir na avaliação da doença que ele muito provavelmente vivenciou.
Referências
Simas, M. L. B., Nogueira, R. M. T. B. L., Menezes, G. M. M., Amaral, V. F., Lacerda, A. M., & Santos, N. A. (2011). O uso de pinturas de Dalí como ferramenta para avaliação das alterações na percepção de forma e tamanho em pacientes esquizofrênicos. Psicologia USP, 22(1), 67-80. https://doi.org/10.1590/S0103-65642011005000006
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Fonte da imagem da capa do post: notaterapia.com.br.
Sobre o autor
Rui de Moraes Jr. é Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos da Universidade de Brasília.
Este texto foi originalmente publicado no Blog Percepto em 28/11/2012.
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de Moraes, R., Jr. (2019, 1 de dezembro). Obras de Dalí como ferramenta para avaliação de alterações perceptivas na esquizofrenia [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2019/12/01/obras-de-dali-como-ferramenta-para-avaliacao-de-alteracoes-perceptivas-na-esquizofrenia/