A percepção está indissociavelmente ligada à sensação (estágio inicial de captura e codificação dos sinais físicos do ambiente) e apresenta mecanismos automáticos que não exigem esforço. Isso pode passar a ideia de que a percepção é um processo preciso e que não sofre interferências. Sendo assim, por vezes, ela aparenta ser um fenômeno que não apresenta grandes problemas de entendimento ao psicólogo e de que o meio cultural pouco ou nada influencia neste processo.
Para desfazermos essa ideia, basta lembrarmos que recebemos por nossos olhos imagens pequenas, distorcidas, invertidas e em um plano bidimensional, a retina. E o sinal de saída é a percepção de um mundo tridimensional com uma riqueza de cores, formas, brilho, contraste e movimento. Isso é possível, pois a percepção conta com processos de ordem superior para ser formada: relações, contexto, memória, julgamento e experiência passada. Dito isto, já dá para se ter uma noção da influência que a cultura exerce na construção de nossa realidade.
É importante ressaltar que olhos, nariz, pele, ouvidos e boca não se limitam apenas a registrar o que está a nossa volta. De maneira sucinta, do input sensorial, a informação do ambiente é codificada e interpretada. Existe uma organização dos dados sensíveis do meio físico desde células especializadas dos diversos órgãos dos sentidos até estruturas corticais de alta complexidade. Na retina humana, por exemplo, já existem células sensíveis a movimentos, cores, intensidades de luz e faixas de frequência espacial que enviam sinais por diferentes redes neurais a diferentes áreas corticais em velocidades diferentes. Ou seja, o estímulo luminoso já é decomposto e fragmentado na retina para ser reorganizado e reconstruído somente em áreas de associação do córtex.
Além dessa herança de base filogenética, que assegura uma fisiologia dos órgãos do sentido que permite organizar a percepção, as influências do meio contribuem para o registro destas impressões sensoriais. Numa analogia aos computadores, podemos dizer que a base genética compõe nosso hardware e a cultura atua como um software, que forma códigos de programação possibilitados pela estrutura física. Com a diferença de que nosso software pode alterar nosso hardware (plasticidade cerebral). É como se a cultura programasse nossa percepção.
Logo, se a cultura modula nossa percepção, então o homem pode convencionar socialmente seus sentidos. Wow!!! Muito legal, mas… isso soa mais como um falso silogismo, ou em outras palavras, uma mentira daquelas! Então o objetivo deste artigo é trazer alguns exemplos da Antropologia para mostrar que isto não se trata de mentira.
Em todas as sociedades existe uma convenção social dos sentidos. As cores, por exemplo, para diversas culturas não coincidem. Quando o historiador Paul Veyne, especialista em história da antiguidade romana, disse que aos gregos o mar era violeta, ele não se referia a uma população inteira que não enxergava bem, mas somente que a categorização entre o verde e o azul não era nítida nos tempos de Homero. Lévi-Strauss, ao estudar os Bororós, percebeu que amarelo e vermelho, assim como o azul e o verde, correspondem a mesma categoria linguística, denominada por cores “quentes” e cores “frias”. Os japoneses, do mesmo modo, têm apenas uma palavra para designar a parte do espectro que vai do verde ao azul: aoi. Esta simplificação em relação ao nosso modelo de cores convencionado não significa uma pobreza linguística ou que não podem separar e distinguir mais cores.
As denominações apenas refletem a necessidade cotidiana que cada cultura tem para sua vida prática e comunicação. O olho humano é capaz de perceber uma parte do continuum de ondas luminosas, o espectro, que se estende de ondas mais longas, que nós enxergamos como “vermelho” até ondas curtas, que vemos como “violeta” (Figura 2). Assim, todos os seres humanos são capazes de perceber todo o espectro de ondas luminosas pela fisiologia do seu sistema visual. Mas a necessidade de cada cultura que vai organizar um matiz de cores específico para compreensão e comunicação.
Como exemplo, os índios das planícies norte-americanas eram reconhecidos pelos “olhos de águia”. Mas será que a qualidade da visão superior era devido a uma acuidade visual fisiologicamente superior? Ou porque desde quando nasciam era exigido e valorizado por seu povo a habilidade de distinguir a grandes distâncias movimentos de animais ou cavaleiros por meio da poeira que de longe levantavam? Ou seja, uma questão de organização perceptiva.
Saindo das planícies norte-americanas para as florestas tropicais sul-americanas, encontramos os índios Tupis. Estes têm um modelo de ordenação visuoespacial diferente do nosso. Nós, que vivemos em cidades, nos orientamos por esquinas, quadrantes ou vias retas e nos encontramos totalmente perdidos em uma floresta fechada amontoada de árvores iguais que não apresenta pontos de referências. Os Tupis a vêem como um conjunto ordenado pelas mesmas árvores que são usadas como sinalizadores e referências bem definidas.
Algo semelhante acontece com populações que organizam seu espaço de modo circular ou que vivem em florestas, como os Zulus, por exemplo. Estes têm dificuldades em perceber em perspectiva geométrica linear, visto que não experienciam isto no dia a dia. O fato de que a percepção de perspectiva é algo influenciado pelo ambiente faz com que estas populações não sofram de ilusões geométricas (Figura 3).
Por enquanto, nos atemos a dar exemplos utilizando a visão. Este é o sentido mais valorizado na maioria das culturas e assim o é em toda civilização ocidental moderna. Talvez fique mais evidente se ilustrarmos com exemplos de culturas em que a visão não tem tamanha proeminência, como os ilhéus andamaneses, caçadores-coletores da Índia, que elaboram um calendário olfativo em consonância com os cheiros que a natureza exala periodicamente ou os esquimós, que se orientam olfativamente em ambientes pouco definidos pela visão.
Entre os Suyás, tribo indígena brasileira que habita o Parque Indígena do Xingu, a olfação permite grande parte da compreensão do mundo em sua cultura. Para eles, as coisas têm características de cheiro, e não o contrário, como em nossa sociedade, que tem uma pobreza semântica em relação aos odores. Ao passo que buscamos a imagem mental de uma pessoa específica quando sentimos um perfume conhecido, visualizamos uma fruta ao sentirmos seu odor ou lembramos-nos da igreja quando cheiramos incenso, os Suyá classificam o mundo sensível em cheiros: forte, acre e suave. Assim, animais carnívoros, fluidos sexuais e mulheres têm cheiro forte, que representa as coisas mais poderosas e perigosas da natureza. Já animais comestíveis e plantas medicinais são acres, que na cosmogonia Suyá representam coisas menos poderosas ou benéficas. E as coisas nem muito perigosas ou importantes são descritas pelo odor suave.
A cultura depende de aprendizagens que são passadas por gerações. Essas aprendizagens ajudam a codificar e interpretar o mundo. Então é de se esperar que aprendizagens individuais também realizem o mesmo processo. Crianças com surdez profunda congênita com mais de três anos, por exemplo, em geral demandam muito tempo de reabilitação após cirurgia de implante coclear. Os sons não passam barulhos caóticos que não são inteligíveis num primeiro momento e que leva tempo a fazer sentido. A relação pessoal com uma classe ou modalidade de estímulos pode garantir uma experiência perceptiva diferenciada. É isso o que nos dizem os afinadores de instrumentos musicais, provadores de vinho, perfumistas, controladores de qualidade, etc.
Em resumo, as aprendizagens individuais de cada um aproveitam de maneira específica nossos sistemas sensoriais. A cultura, como guia geral de aprendizagens de cada sociedade, tem um papel importante nesta relação. Para fechar o texto e deixar esta relação clara, transcrevo o diálogo de uma fábula que está no texto de José Carlos Rodrigues, que utilizei para retirar a maioria dos exemplos e amadurecer as idéias aqui trabalhadas:
Certa vez um camponês caminhava por uma rua movimentada na companhia de um amigo criado na cidade, quando de repente exclamou:
_ Ouça o grilo cantando!
O citadino nada conseguia ouvir, até que o camponês foi buscar, escondido em um buraco, o grilo que cantava.
_ Como você pode ouvir o grilo em meio a toda esta barulheira? _ perguntou o da cidade cheio de admiração.
_ Olhe! _ respondeu o camponês deixando cair uma moeda no chão. Várias e várias pessoas se voltaram, ao ouvir o fraco ruído da moeda.
_ Tudo depende daquilo por que a gente se interessa.
Referência
Rodrigues, J. C. (1989). Os outros os outros. In Antropologia e comunicação: Princípios radicais (pp. 130-138). Rio de Janeiro, RJ: Espaço e Tempo.
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Fonte da imagem da capa do post: wallpaperaccess.com.
Sobre o autor
Rui de Moraes Jr. é Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos da Universidade de Brasília.
Este texto foi originalmente publicado no Blog Percepto 11/04/2012.
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de Moraes, R., Jr. (2019, 1 de dezembro). Aos gregos o mar era violeta, ou como a cultura constrói nossa realidade [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2019/12/01/aos-gregos-o-mar-era-violeta/