Você sabia que a percepção do sabor e a apreciação de um bom prato vai além do paladar? Desde o cheiro do alimento até o peso do talher que usamos interferem em como sentimos o sabor. Assim, vários fatores como a iluminação, a textura, o som ambiente e a cor se relacionam no processo sensorial.
O estudo acerca das bases neurais da percepção e da sensação relacionadas ao sabor é chamado de Neurogastronomia. Essa é uma área relativamente nova que busca compreender como o cérebro recebe, processa e interpreta as informações enquanto comemos. Sendo assim, a compreensão da interação entre o sistema sensorial e neurológico possibilita o entendimento não somente sobre o que se come, mas como e por que se come.
O olfato pode interferir no gosto do que comemos?
Quando ficamos resfriados, não sentimos cheiros muito bem, logo, percebemos que o sabor da comida também não é o mesmo. Isso acontece porque o olfato e o paladar têm uma relação direta e trabalham em conjunto para que você consiga sentir o gosto da comida. Portanto, o aroma é essencial para identificarmos o sabor dos alimentos.
Em 2013, Marta Tafalla, diagnosticada com anosmia congênita, escreveu um artigo descrevendo como é o mundo sem o olfato. Ela relata que não percebe os alimentos como as outras pessoas. Tafalla conta que na sua adolescência era fascinada por lojas de chás e adorava ver as pessoas passando horas degustando bebidas que prometiam sabores dos mais distintos, como frutas tropicais e especiarias orientais. Entretanto, relata: “toda vez que eu tomava meu chá, eu me sentia enganada, porque na minha xícara só havia água pura com açúcar. Durante anos bebi os chás mais estranhos e fortes, mas embora me sentisse muito frustrada, não sabia como expressar minha decepção.”.
Analisando a condição relatada por Marta, nota-se que o olfato de fato interfere no gosto do que comemos. Não é à toa que apenas o cheiro da comida nos dá pistas de como será nossa experiência gastronômica.
É possível saborear a comida com os olhos?
O olfato não é o único sentido que se combina com o paladar para gerar a percepção do sabor. O primeiro contato com o alimento é pela visão, e quando o vemos já criamos expectativas sobre ele. Um experimento realizado por Charles Spence, pesquisador líder no campo do Laboratório de Pesquisa Crossmodal da Universidade de Oxford, junto à pesquisadora da Unicamp, Fabiana Carvalho, tem investigado o impacto das cores das xícaras no sabor do café servido. Esse estudo revelou que ao servir café em xícaras rosas, o sabor percebido era mais doce em comparação com as xícaras brancas. Já os cafés servidos em xícaras amarelas ou verdes, quando comparados aos servidos em xícaras brancas, eram mais associados a um sabor mais azedo. Portanto, podemos afirmar que também saboreamos a comida com os olhos.
Como escutamos o sabor?
Outro fator que interfere diretamente em como nos sentimos enquanto comemos são os sons. Ouvir o “croc croc” dos alimentos, a música do ambiente, o barulho ao abrir a embalagem e o som do gás saindo da garrafa de Coca-Cola, influencia a forma como percebemos a comida na boca.
Por exemplo, todo mundo prefere batatas fritas crocantes. Por isso, instigado a compreender essa correlação, Charles Spence investigou como os sons produzidos ao morder a batata frita afetam a percepção da crocância e do envelhecimento da batata. Então, o cientista observou que quanto maior o volume e/ou frequência do feedback auditivo eliciado durante a mordida, maior era a percepção de crocância e frescor das batatas.
Além disso, a frequência sonora também pode influenciar na percepção de sabor. Isso é exemplificado no artigo: “73 Hz é o novo lúpulo! Escutar sons de baixas frequências deixa a cerveja mais amarga“, o qual explica como a frequência sonora tem efeito direto na percepção de amargor da cerveja.
O impacto do COVID-19 na percepção dos sabores
Mais recentemente, com a pandemia, diversos estudos estão sendo desenvolvidos em relação a perda repentina do olfato e paladar como sintoma da COVID-19. No entanto, para além da perda, há também a distorção do olfato e do paladar. Diante disso, um artigo do The Washington Post conta a história de Jennifer Spicer que, sem ter tido sintomas significativos após dias de sua recuperação do COVID-19, passou a sentir nada além do gosto de gasolina ao tomar uma taça de vinho tinto.
Essa situação não é muito diferente da experiência de muitas outras pessoas recém recuperadas da COVID-19. Essa distorção temporária dos cheiros ou aromas, é uma condição denominada parosmia. Tendo em vista que o olfato está intimamente relacionado à percepção de sabor, a parosmia pode também impactar diretamente o paladar. No caso de Spicer, além do cheiro e do gosto do vinho e do café terem sido substituídos pelos da gasolina, a carne parecia estar apodrecendo e a pasta de dente de menta passou a ser intolerável.
Afinal, qual a relevância da Neurogastronomia?
A Neurogastronomia tem muito a agregar não somente na área da culinária, descobrindo fatores que podem ser usados para melhorar a experiência gastronômica, mas também nas questões de saúde, de marketing e de hábitos alimentares individuais e coletivos. No campo da saúde, a Neurogastronomia pode contribuir para melhorar o cotidiano de pessoas que têm doenças nas quais eles têm o olfato ou o paladar alterado como, por exemplo, na doença de Parkinson e em casos de Alzheimer. Além disso, compreender as relações individuais e coletivas com os alimentos, analisando tanto o nível físico quanto o psicológico, pode ajudar no estudo e tratamento de transtornos alimentares.
Portanto, agora quando você estiver comendo sua comida favorita, vai entender que não é somente a sua boca, mas seus olhos, ouvidos e nariz que vão proporcionar essa experiência tão prazerosa que é comer. Afinal, todo mundo gosta de comer e apreciar um bom prato!
Referências
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Sobre as autoras
Luíza Guimarães Vasconcelos. Graduanda em Psicologia pela UnB em busca por uma prática transformadora e emancipatória. Capoeirista que gosta de conhecer novos lugares e ficar embaixo da queda de cachoeiras. Sonha em pegar uma mochila e conhecer a América Latina, mas sempre quer voltar logo para casa e ficar na cama com seu gato frajola, Oliver.
Liz Guimarães Campos Roriz de Amorim. Graduanda em Psicologia pela UnB. Gosta de explorar as diferentes áreas da Psicologia e descobrir como elas podem impactar e transformar a sociedade. Ama shows e viagens com boas companhias.
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Vasconcelos, L. G., & de Amorim, L. G. C. R. (2022, 02 de julho). Sabor, uma experiência gastronômica multissensorial. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2022/07/02/sabor-uma-experiencia-gastronomica-multissensorial/