Pistas de localização auditiva (parte 1): a ciência por trás da brincadeira cabra-cega

Também conhecida como cobra-cega e gato mia, essa brincadeira já fez e ainda faz parte da infância de muitas pessoas no mundo todo. Ela consiste basicamente de uma pessoa que fica de olhos vendados (a cabra cega) e outras pessoas que fogem fazendo apenas alguns barulhos para serem encontradas. Parece simples, não é? Mas você saberia me dizer como nós conseguimos achar uma pessoa de olhos fechados apenas pelo som que ela emite? Nesse texto vamos abordar os indícios auditivos que nos auxiliam a perceber objetos no espaço. Em especial, vamos focar nos chamados indícios binaurais.

Os sons que escutamos nos dizem muitas coisas, algumas até passando despercebidas, outras se tornando automáticas. Uma dessas funções automáticas nos permitem identificar onde nós e outros seres e objetos se encontram no espaço, é o que chamamos de localização na cena auditiva. Por meio dessa função conseguimos saber em que direção um som está sendo emitido, se esse som vem de cima ou de baixo ou até se ele está perto ou longe de nós.

Para entendermos como isso funciona precisamos primeiros compreender que dentro do nosso ouvido existem estruturas capazes de captar e transformar o som (compreendido como um padrão de alteração da pressão do ar) em um tipo de informação capaz de ser processada pelo nosso cérebro. Por si só o som não é capaz de transmitir informações de localização, mas através de como esse som chega aos nossos ouvidos e como nosso cérebro processa esse som podemos obter pista (ou indícios) de localização auditiva.

A primeira pista que temos é a Diferença Interaural de Tempo, que pode ser entendida como a diferença que o som leva para chegar em cada ouvido. Para entendermos melhor esse conceito vamos dar um exemplo. Suponhamos que estamos parados de olhos fechados e um cachorro late do nosso lado direito (Figura 1). O som emitido por esse cachorro necessariamente vai chegar primeiro no nosso ouvido direito e posteriormente em nosso ouvido esquerdo. Essa pequena diferença de chagada de som de um ouvido ao outro, cerca de milissegundos, já é o suficiente para que nosso córtex auditivo (região do cérebro responsável pelo processamento de informações vindas do sistema auditivo) identificar que esse som veio do lado direito (Figura 3, ilustração à esquerda). Esse processo ocorre de forma automática.

Figura 1. Passeio no parque com o cachorro. Quando o cachorro está na lateral de seu dono, o som emitido por um latido chega aos ouvidos esquerdo e direito de seu dono em tempos diferentes. Essa é a base da Diferença Interaural de Tempo. Fonte da imagem: unsplash.com.

Nossa segunda pista, tão importante quanto a primeira, é a Diferença Interaural de Intensidade. Dessa vez a pista sonora será obtida por meio da diferença do nível de pressão do som que chega aos dois ouvidos. De forma mais clara, podemos entender assim: o som se propaga por meio de ondas que comprimem o ar, quando essas ondas chegam em nossa cabeça, elas encontram um obstáculo que vai fazer com que as ondas percam “força” (a intensidade do som, ou amplitude da onda sonora; Figura 3, ilustração à direita). Fazendo uma analogia, podemos pensar que quando uma onda encontra uma pedra no meio do caminho, o espaço logo após a pedra vai abrigar a continuação dessa onda só que com menor força (Figura 2). Essa diferença de intensidade entre o lado que recebe a onda e o lado oposto nos dá uma informação de onde vem o som.

Figura 2. Choque da água contra pedra. A onda quando se choca com a pedra, perderá força; já uma onda que se propaga sem obstáculos, não perderá força de modo abrupto. Essa é a base da Diferença Interaural de Intendidade. Fonte da imagem: unsplash.com.

É importante ressaltar que essas pistas não são infalíveis, a Diferença Interaural de Tempo tem maior capacidade de captação para sons de baixa frequência, já a Diferença Interaural de Intensidade torna-se mais efetivo para sons de frequências mais altas. Outra especificidade é que esses dois tipos de pistas nos auxiliam a discriminar a direção de algo, mas não são eficazes para determinar a altura em relação ao chão ou distância em relação ao ouvinte. Outra característica é que tanto a Diferença Interaural de Tempo quanto a Diferença Interaural de Intensidade são indícios binaurais de localização, ou seja, necessitam dos dois ouvidos funcionando para terem eficácia.

Figura 3. Ilustração do funcionamento de indícios binaurais de localização quando existe uma fonte sonora na diagonal direita à frente do ouvinte. Diferença Interaural de Tempo: o som leva menos tempo para alcançar o ouvido direito do ouvinte (desenho à esquerda). Diferença Interaural de Intensidade: o som alcança o ouvido esquerdo do ouvinte com menos “força” (amplitude), pois a sua cabeça funciona como uma barreira acústica que atenua o sinal sonoro (desenho à direita). Legenda: Amplitude – Amplitude; Left – Esquerda; Right – Direita. Imagem retirada de Sun. L., Zhong, X., & Yost, W. (2015). Dynamic binaural sound source localization with interaural time difference cues: Artificial listeners. The Journal of the Acoustical Society of America, 137, 222. https://doi.org/10.1121/1.4920112.

Existem também os indícios monaurais de localização, que necessitam apenas de um ouvido para “funcionarem”. Entre eles temos: o indício espectral, o volume e o efeito Doppler. Vamos explicar cada uma destas pistas em um próximo texto do blog. Por enquanto, é importante saber que todos esses indícios de localização auditiva (tanto os binaurais quanto os monaurais) trabalham de modo automático e em completa sinergia com o sistema auditivo e a cognição. É comum que, vez ou outra, algum indício dê uma informação equivocada, mas isso não nos prejudica porque todos os outros indícios nos fornecem a localização correta de um objeto. Também é possível que condições específicas do ambiente ou alterações anátomo funcionais seja responsáveis por muitos indícios de localização equivocados, mas isso só ocorre em condições bem atípicas. De modo geral, essas pistas nos auxiliam bastante!

Tantas coisas acontecendo no nosso sistema auditivo apenas para que nossa brincadeira de cabra-cega fique mais divertida. Mas, e aí? Você consegue colocar todo esse aprendizado na prática? Na próxima vez que você estiver brincando de cabra-cega ou quando estiver passando pelo parque, feche os olhos e lembre de tudo que você leu. Tente encontrar os sons ao seu redor e acertar de onde eles vêm, a que distância se encontram, que posição eles ocupam no espaço ao seu redor.  O som é uma porta de entrada para um novo mundo, mas para conhecê-lo é preciso de se conhecer-se, e isso é ciência.

Referências

Goldstein, E. B. (2014). Sensation and perception (9ª ed). Belmond, CA: Wadsworth. Cengage Learning.

Lemos M. P., Localização de fontes sonoras por ouvintes normais em ambiente reverberante. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Biofísica, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4980

Lorenzi, A. (2019, 4 de novembro). Audição binaural e monaural. Voyage au centre de l’audition. http://www.cochlea.eu/po/som/psicoacustica/localizacao

Oliveira, A. C. R., Luciana , P. L., Vivian, P. M. N., Leônidas, M., Pedro, L., & José, F. (2008). Localização de fontes sonoras: A importância das diferenças dos limiares auditivos interaurais. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, 13(1), 7-11. https://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342008000100004

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Sobre o autor

Jonas Florentino de Andrade. Graduando em Psicologia pela UnB. Amante de boa música e de animes. Gosta de não somente conhecer pessoas, mas também as histórias que as cercam. Interessado em aprender novos idiomas, e conhecer novas culturas.

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de Andrade. (2021, 5 de dezembro). Pistas de localização auditiva (parte 1): A ciência por trás da brincadeira cabra-cega. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/12/05/pistas-de-localizacao-auditiva-parte-1-a-ciencia-por-tras-da-brincadeira-cabra-cega/

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