Acinetopsia, a cegueira para movimentos

Sabe quando estamos assistindo um vídeo, mas a internet está fraca e faz com que ele rode travado, de forma que a imagem deixe de ser fluida e avance “em quadros”? Ou quando fazemos um flipbook, mas passamos as páginas atrapalhadamente e, em vez de enxergarmos o movimento do desenho, enxergamos ele no meio da página e, logo em seguida, já no final? Agora, imagine enxergar os movimentos dessa forma, “cortados em quadros”, todos os dias. Qual o impacto que isso teria em sua vida? É assim que sujeitos que possuem acinetopsia enxergam o mundo.

Acinetopsia, apelidada como cegueira de movimento, é uma condição rara na qual sujeitos têm a percepção visual do movimento prejudicada em função de lesões cerebrais. Para entendermos melhor esta condição clínica e seus impactos, primeiro precisamos entender como o cérebro percebe o movimento e qual a importância disso para nós.

Nosso cérebro é um órgão funcionalmente especializado, ou seja, possui módulos responsáveis pelo processamento de estímulos específicos. No caso da percepção de movimento, as principais áreas são a área temporal média (MT, do inglês middle temporal area, também chamada de V5) e a área temporal superior média (MST, do inglês medial superior temporal area). Veja a Figura 1 para localização no encéfalo dos módulos para percepção visual de movimento.

Figura 1. Representação da área temporal média (MT ou V5) e da área temporal superior média (MST). Imagem retirada de Goldstein (2014).

Essas duas regiões corticais se encontram na via dorsal do nosso cérebro, apelidada de “via onde/o que” por ser responsável pelo nosso senso de localização e pelo início e direcionamento de ações (Figura 2). Estando MT e MST em perfeito funcionamento, podemos atribuir significados a eventos ambientais, receber informações dos objetos e da dinâmica espacial ao nosso redor, direcionarmos nossa atenção para informações ambientais importantes e nos movimentarmos por meio da percepção do movimento. Mas como essas áreas funcionam?

Figura 2. Representação das Vias Dorsal (via onde) e Ventral (via o que/como). Imagem retirada de: commons.wikimedia.org.

Primeiramente, é importante entendermos como o que nós vemos chega até o nosso cérebro. Nosso campo visual é composto por diversos estímulos – estáticos ou não – que formam o ambiente que enxergamos. Ao focarmos em um quadro do ambiente visual, sua imagem externa é projetada em nossa retina e, em sequência, processada no córtex visual primário. De lá a informação passa a percorrer as duas grandes vias mencionadas, “o que” e “onde/como”. Graças ao caráter modulador do nosso córtex, MT é altamente sensível a estímulos em movimento e, quando há movimentação nas informações do nosso campo visual, os neurônios de MT respondem com altas taxas de disparo (despolarizações).

Os neurônios de MT são especializados e respondem a movimento a depender de sua orientação (ou seja, o sentido do movimento). Sendo assim, se temos informação visual se movendo para cima, por exemplo, isso implica maior taxa de disparo dos neurônios sensíveis a esta orientação específica. O mesmo vale para todas as orientações nas quais os estímulos podem se mover. É muito comum que em uma cena visual dinâmica partes do campo visual que cobrem um objeto apresentem isoladamente movimentos em direções diferentes ou não congruentes com o movimento do objeto (Figura 3). Isso é chamado de “problema da abertura” e nosso sistema visual é capaz de reunir informações de diferentes áreas do campo visual para perceber o movimento como um todo coerente. Essa integração de informações é feita em grande medida por MT.

Figura 3. “O problema da abertura”. Imagem retirada de Goldstein (2014).

Agora que já entendemos como funciona nossa percepção do movimento, podemos discutir um pouco mais sobre a acinetopsia. Essa condição é uma agnosia visual rara, com poucos casos relatados e com uma descrição relativamente recente. Ela se caracteriza por uma percepção visual deficitária do movimento, porém a capacidade de perceber cores e objetos estáticos permanece intacta. É interessante observar que, em casos de acinetopsia, a percepção auditiva do movimento também não é afetada. Guarde essa informação, ela será importante mais para a frente.

De modo geral, a acinetopsia foi observada em casos de: (1) lesões cerebrais em MT, (2) atrofia cortical posterior associada ao uso do antidepressivo nefazodona e (3) como um fenômeno epiléptico paroxístico. Essa condição clínica também pode ser induzida artificialmente por meio da estimulação magnética transcraniana (EMT). Nesse caso, uma bobina libera pulsos magnéticos que alcançam regiões alvo no córtex e que lá podem polarizar ou hiperpolarizar os neurônios. No caso de uma hiperpolarização, a área fica inativada temporariamente e o processamento neural interrompido, efeito muito semelhante a uma lesão. Essa técnica é muito segura, indolor e a inativação é apenas momentânea.

A acinetopsia desenvolvida após lesões oriundas de acidente vascular cerebral (AVC) normalmente não persiste por muito tempo. Acredita-se que isso acontece porque diversas áreas corticais participam do processo perceptual. Entretanto, está documentado um estudo de 2012 realizado na Universidade de Glasglow (Escócia) sobre um caso de acinetopsia após um AVC que durou 23 anos.

Agora que entendemos melhor como funciona a acinetopsia, é de suma importância pensarmos como essa condição impacta a vida das pessoas que são por ela acometidas. Uma pessoa com acinetopsia apresenta dificuldades para realizar atividades do cotidiano, como servir uma xícara de café. Nesse exemplo, o paciente perceberia o líquido vindo da garrafa em direção ao copo como algo congelado, ou como se as pontas de um mesmo pedaço de tecido tivessem sido coladas no fundo da jarra e do copo (Vídeo 1).

Vídeo 1. Exemplo de como seria percebido movimento por quem tem acinetopsia. Adaptado de: youtube.com.

A acinetopsia também impõe risco à segurança da pessoa, uma vez que dificulta, por exemplo, o ato de atravessar a rua ou caminhar em uma calçada com vários pedestres. Ao observar as pessoas caminhando, é comum um indivíduo com acinetopsia afirmar que o corpo estava em determinado lugar e, de repente, estava em outro, sem que ela percebesse o movimento dele. A percepção seria parecida com os jogos de videogame, nos quais os lutadores entram em um buraco que surge no chão e saem atrás do adversário, surpreendendo-o com alguns golpes (veja o Vídeo 2 para uma ilustração). Por fim, essa condição dificulta interações sociais, visto que a pessoa não consegue acompanhar os movimentos faciais, especialmente dos lábios e, por mais que não percebamos tão facilmente, nosso cérebro conta muito com a ajuda da leitura labial para entendermos o que nos está sendo dito.

Vídeo 2. Trecho do seriado “Dr. House” em que o médico avalia uma pessoa com cegueira para movimentos. Adaptado de: youtube.com.

Devido a percepção deficitária do movimento, um indivíduo com acinetopsia precisa desenvolver algumas estratégias para realizar suas atividades cotidianas. Ele passa a colocar o dedo na borda do copo, utilizando o tato, para sentir quando o recipiente está prestes a derramar e, assim, servir sua bebida sem se molhar ou sujar o ambiente. Para atravessar a rua, essas pessoas costumam se atentar ao volume do som emitido pelos carros, uma vez que o sistema auditivo auxilia nosso senso de localização e quanto mais alto for o som, mais próximo está seu emissor.

Com esses poucos exemplos podemos compreender que viver com acinetopsia não é uma tarefa fácil, mas também não é impossível. Nós, seres humanos, possuímos uma imensa habilidade de adaptação e, em casos de agnosias, nosso cérebro utiliza da neuroplasticidade e da interação entre nossos sistemas sensoriais para se adaptar às situações adversas.

Compreender mais sobre essa condição nos permite entender melhor sobre o funcionamento do cérebro e do processo perceptual. E, por mais que haja pouquíssimos casos de acinetopsia, a qualidade de vida de quem vive com essa condição é de extrema importância e o papel da ciência é fundamental para promover uma sociedade mais inclusiva, seja para quem vive com acinetopsia ou com qualquer outra agnosia visual.

Referências

Ardila, A. (2016). Some unusual neuropsychological syndromes: Somatoparaphrenia, akinetopsia, reduplicative paramnesia, autotopagnosia. Archives of Clinical Neuropsychology, 31, 456–464. https://doi.org/10.1093/arclin/acw021

Cooper, S. A., Joshi, A. C., Seenan, P. J., Hadley, D. M., Muir, K. W., Leigh, R. J., & Metcalfe, R. A. (2012). Akinetopsia: Acute presentation and evidence for persisting defects in motion vision. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry 83(2), 229-230. http://dx.doi.org/10.1136/jnnp.2010.223727

Eysenck, M. W, & Keane, M. T (2017). Manual de Psicologia Cognitiva (7° ed.). Porto Alegre: Artmed.

Schiffman, H. R. (2005). Sensação e Percepção. Rio de Janeiro: LCT.

Sternberg, R. J. & Sternberg, K. (2017). Psicologia Cognitiva (7ª ed.). São Paulo: Cengage Learning., 3, 67- 109.

Áudio do post

Siga por e-mail e compartilhe nas redes sociais

Fonte da imagem da capa do post: Freepik.


Sobre as autoras

Ana Emanoelly Silva Rodrigues. Graduanda de Psicologia (UnB) com interesse em muitas áreas da psicologia, especialmente, em psicologia organizacional, social, evolucionista e da saúde. Amante de músicas, filmes de romance, séries de comédia, textos acadêmicos em linguagem acessível e doces.

Daniela Magalhães Zendersky. Graduanda de Psicologia (UnB). Se interessa por diversas áreas das ciências psicológicas, mas sua maior afinidade é com a Psicanálise e a Psicodinâmica do Trabalho. Além da psicologia é apaixonada por arte, estuda danças, música e teatro desde bem pequena e, atualmente, é atriz de teatro musical.

Termos de reprodução e divulgação do texto

Todos os textos publicados no eupercebo.unb.br podem ser reproduzidos na íntegra ou parcialmente por meios impressos e digitais, desde que não sofram alterações de conteúdo e que a fonte seja mencionada. Como referenciar este texto (normas da APA):

Rodrigues, A. E. S., & Zandersky, D. M. (2021, 27 de julho). Acinetopsia, a cegueira para movimentos. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/07/27/acinetopsia-a-cegueira-para-movimentos/

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *