Percepção tátil e a leitura em Braille

[CONTÉM SPOILERS]

Trinta anos depois da guerra ter dizimado o mundo, um guerreiro solitário chamado Eli caminha por horizontes arruinados dando esperança para os que restaram. Apenas um ou outro homem compreende o poder de um livro que Eli carrega e está determinado a se apoderar dele. Apesar de Eli preferir a paz, ele arriscará a sua vida para proteger a sua carga preciosa, pois precisa cumprir o seu destino de ajudar a restaurar a humanidade.

Se você já assistiu O Livro de Eli (Figura 1), possivelmente ficou surpreso(a) ao descobrir a reviravolta central do filme: a Bíblia que o protagonista tem em sua posse é escrita em Braille. Os fãs da produção discutem até hoje para tentar entrar em um consenso sobre Eli ser ou não cego. Apesar disso, sabemos que ele consegue ler em Braille, já que existem cenas mostrando sua leitura diariamente. E se o final do filme deixa você intrigado, ou se você tem curiosidade sobre como funciona a leitura em Braille, veio ao lugar certo!

Figura 1. Imagem utilizada para divulgação do filme O Livro de Eli. Retirado de: pt.wikipedia.org.

A leitura em Braille é possível porque nosso corpo possui a habilidade de localizar facilmente e com precisão as sensações do tato sobre uma parte estimulada na pele, o que é denominado localização pontual. Uma das principais funções sensoriais da pele é informar ao nosso organismo o que se encontra próximo a ele, de modo que a estimulação das regiões com função mais exploratória e móvel – como as nossas mãos – tenham uma localização pontual mais precisa.

Podemos medir a localização pontual a partir do limiar de dois pontos, que é a menor distância entre dois pontos para que se possa sentir ambos e diferenciá-los. Se a distância entre estes dois estímulos – os dois pontos – forem menores que estes limiar, percebemos apenas um ponto. Em geral, as regiões da pele mais móveis são mais sensíveis, tendo limiares de dois pontos muito baixos. Como exemplo, o limiar de dois pontos para o polegar é de 4 milímetros, isso significa que dois pontos sobre o seu polegar precisam estar separados em, pelo menos, 4mm para que você consiga senti-los.

Fica claro que os nossos dedos são bastante eficientes em receber, identificar e traduzir sinais de pressão mecânica sobre a pele, o que possibilita que pessoas cegas (como talvez o personagem Eli) consigam ler utilizando sensações táteis. Mas… Como funciona o Braille? Quão rápida é sua leitura? Existem diferentes escritas em Braille para diferentes idiomas? Você encontrará as respostas para essas perguntas a seguir.

Atualmente, o alfabeto em Braille é um sistema de leitura composto por pontos em relevo em uma superfície utilizando várias combinações para representar letras, palavras e números (Figura 2). O alfabeto Braille é universal, isto é, o que varia entre idiomas é a configuração dos arranjos e das sequências de letras – assim como acontece com o alfabeto latino ou romano, utilizado na maioria dos países da Europa Ocidental ou Central e países colonizados por eles.

Figura 2. Imagem demonstrando o alfabeto, números, pontuação e caracteres especiais em Braille. Retirado de movimentoescolainclusiva.blogspot.com.

Retomando o conceito de localização pontual citado anteriormente, para ler em Braille não é preciso apenas sentir as sensações na pele causadas pelos pontos em relevo. É necessário identificar as configurações destes pontos, reconhecer caracteres (uma letra, um número ou uma pontuação) e ainda fazer associações entre grafias e fonemas, entre outros processos envolvidos. Nada simples, né? Para se ter uma ideia, um leitor adulto e experiente em Braille consegue ler cerca de 100 palavras por minuto, enquanto um leitor com a visão normal lê cerca de 250 palavras por minuto.

Existem, ainda, diferenças neurais entre pessoas com visão e pessoas cegas. Essas diferenças podem ser explicadas pelo conceito de plasticidade neural. Para entender melhor, vamos imaginar dois gatinhos. Eles são irmãos, foram criados pelo mesmo dono e são bem parecidos. Até que um dia, um dos gatinhos perde uma das patinhas traseiras em um acidente de carro e tem que reaprender a fazer tudo que fazia antes, caminhar, comer e se esticar, com apenas três patas.

Os novos comportamentos do gatinho para se adaptar a sua nova configuração corporal entram no conceito de plasticidade comportamental, ou seja, o gatinho muda seus comportamentos devido ao ambiente. No entanto, não vão ser apenas seus comportamentos que vão mudar. Seus circuitos neurais vão se ajustar e criar novos caminhos para se adaptar à nova realidade corporal do gatinho, ou seja, seu cérebro também vai mudar!

Ao pensar nas bases neurais envolvidas na leitura Braille, é importante mencionar que em meados da década de 1950 já tínhamos conhecimento de uma correspondência entre os sentidos da pele e áreas cerebrais. Isso é ilustrado de forma caricaturada na Figura 3 e está muito relacionado a plasticidade e a percepção tátil de detalhes que explicamos. O início deste mapeamento se deu por insights por meio de pacientes neurológicos que sofreram lesão cerebral e por meio de remoção cirúrgica de porções do encéfalo em animais experimentais em que se observava o déficit somatossensorial causado pela lesão. Num momento posterior, técnicas de eletrofisiologia foram essenciais para a descrição de mapas somatossensoriais. Hoje, já temos tecnologias não invasivas que permitem verificar a atividade neural em cérebros intactos e em funcionamento.

Figura 3. Representação distorcida do corpo humano, baseada na correlação entre as sensações experienciadas e sua correspondência neural. Adaptado de en.wikipedia.org.

O conceito de plasticidade comportamental é um excelente exemplo da importância da interação ambiental para os seres humanos, de como moldamos e somos moldados por tudo ao nosso redor. E isso acontece durante toda nossa vida, desde a infância até ficarmos velhinhos, sendo que toda a nossa história de vida afeta nosso cérebro e nossos processos mentais.

Importante! Devemos saber que a plasticidade, em termos neurais, nem sempre pode ser associada diretamente a mudanças no comportamento. Além disso, pode acontecer de ela não ocasionar mudanças expressivas no comportamento ou ocasionar mudanças observáveis apenas em testes específicos, ou mesmo levar a adaptações disfuncionais.

Pronto! Agora que você já sabe quais são os mecanismos cerebrais envolvidos na leitura em Braille. As placas de sinalização escritas em Braille por aí já não serão tão misteriosas. Mas que diferença faz tê-las ou não? A resposta é simples: acessibilidade. Com esse recurso, as pessoas cegas estão em situações mais prováveis de conseguirem acesso ao conhecimento, à cultura, ao lazer e, principalmente, às informações. Todos esses aspectos são essenciais para a inclusão de um cidadão com necessidades especiais em sua sociedade.

Referências

Ferrari, E. A., Toyoda, M. S., Faleiros, L. & Cerutti, S. M. (2001). Plasticidade Neural: Relações com o Comportamento e Abordagens Experimentais. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 17(2), 187–194. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722001000200011

Huertas, J. A., Espinosa, M. A., Simón, C. (1998) Dos aspectos claves en la integración del ciego: La orientación y movilidad y el acceso a la información escrita. Cultura y Educación, 10(3-4), 87-97. https://doi.org/10.1174/113564098320762058

Pascual-Leone, A., Amedi, A., Fregni, F., & Merabet, L. B. (2005). The plastic human brain cortex. Annual Review of Neuroscience, 28, 377-401. https://doi.org/10.1146/annurev.neuro.27.070203.144216

Schiffman, H. R. (1934). Os sentidos da Pele. (Ed. 5) Sensação e Percepção / Harvey Richard Schiffman: tradução Luís Antônio Fajardo Pontes, Stella Machado (300-324). Rio de Janeiro: LTC.

Silver, J., Johnson, B., Kosove, A. A., Washington, D. (Produtores) & Hughes, A., Hughes, A. (Diretores). (2010). O livro de Eli [DVD]. Novo México: Alcon Entertainment, Silver Pictures.

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Foto de capa do post: zoom.com.br.


Sobre as autoras

Lara Borges Larroyed. É estudante de Psicologia na Universidade de Brasília. Gosta de longas caminhadas na praia, arte e frango frito.

Maria Clara Santana Lima. É estudante de Psicologia na Universidade de Brasília. Apesar de gostar bastante da área da saúde e estagiar em um hospital de reabilitação, se interessa muito por pesquisa básica. Enquanto descobre o caminho que vai seguir, tenta recuperar um antigo hábito que tinha antes de entrar na Universidade: ler e pintar. 

Rhayane de Castro Miranda. É aluna da Universidade de Brasília no curso de Psicologia, profissão que escolheu desde seus 11 anos. Interessada em Psicologia Social e do Trabalho, adora realizar pesquisas. Nas horas vagas divide seu tempo entre brincar com seu doggo Biscoito e mimar sua mãe. Ler e jogar RPG virtual são seus passatempos favoritos.

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Lorrayed, L. B., Lima, M. C. S., & Miranda, R. C. (2020, 30 de setembro). Percepção tátil e a leitura em Braille [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2020/09/30/percepcao-tatil-e-a-leitura-em-braille/

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