Imagine aquele dia em que te bate uma enxaqueca e sua cabeça parece estar prestes a “explodir”, e você chega a se contorcer de tanta dor. Já imaginou se essa sensação pudesse simplesmente desaparecer em, literalmente, um estalar de dedos? Embora possa parecer revolucionária, há uma prática de técnicas facilmente aplicáveis – embora não tão simples quanto estalar dedos – que vem sendo utilizada desde as mais antigas civilizações: a hipnose, cujos primeiros registros datam de 1.500 a.C, no Egito.
Mesmo essa técnica sendo muito antiga, ela só foi levada a sério apenas a partir do século XIX, tendo os primeiros estudos sido realizados no século XVIII. Um cientista chamado Franz Anton Mesmer foi o primeiro a testar esse método, com a utilização de ímãs na fronte de pacientes para o alívio de dores, em 1765.
Mesmer achava, entretanto, que a cura era ocasionada por um fluido magnético invisível, o “magnetismo animal”, uma conclusão mais mística do que científica. Depois disso, pesquisadores, como Benjamim Franklin e o químico Lavoisier, afirmaram que essa hipótese estava definitivamente equivocada e que, na verdade, o alívio causado pelas técnicas de Mesmer era mero resultado da imaginação dos pacientes.
Hoje em dia, a hipnose pode ser considerada uma forma de tratamento da dor em que o alívio é alcançado por meio da sugestão, normalmente oferecida por um hipnotista ou alguém que domine a técnica. Mas, afinal, o que é essa técnica? Ela consiste na alteração do estado de consciência, que fica suscetível à receptividade de sugestão e à modificação de percepções e memórias, bem como ao aumento do controle sistemático de funções fisiológicas normalmente involuntárias.
Fisiologicamente falando…
De acordo com pesquisadores da Universidade de Roma (La Sapienza), em termos fisiológicos, o fenômeno do alívio da dor pela hipnose ocorre pelo fato de que ela afeta a atividade de áreas do cérebro envolvidas nos processos de percepção e tolerância à dor. Os autores revisaram estudos de neuroimagem funcional e identificaram padrões de ativação e desativação de áreas do cérebro que ocorrem em condições de dor moduladas pela hipnose. Os resultados dos estudos apontaram para mudanças na funcionalidade do cérebro em componentes da rede de dor, que envolve uma área importante chamada córtex cingulado anterior (CCA).
A importância do CCA é evidente no processo de sensação dolorosa, pois essa área parece estar relacionada principalmente à sensação de sofrimento causado pelo dor. Evidência disso são os estudos que revelam que pacientes que passaram por lobotomia frontal (retirada cirúrgica de uma parte específica do cérebro) não perderam a sensação de dor, mas somente a percepção de sofrimento causado por ela.
Os mecanismos neuropsicofisiológicos da hipnose também foram estudados por meio de outras técnicas envolvendo mapeamento cerebral, tais como Potenciais Evocados e Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET-SCAN), em países como Canadá, França e Estados Unidos. Estudos conduzidos em 1998 com a utilização de tomografia por emissão de pósitrons destacaram que pacientes sob anestesia hipnótica tinham aumento de serotonina em áreas cerebrais responsáveis pela percepção consciente da sensação de dor e tinham diminuição dos níveis de cortisol no sangue. Alguns anos mais tarde, foi desenvolvido um estudo com 12 voluntários, divididos em dois grupos, tendo ambos sido submetidos à estimulação térmico-dolorosa, mas estando um sob efeito de hipnose e o outro representando o grupo controle. De acordo com os resultados obtidos, os indivíduos submetidos à hipnose apresentaram menor ativação no córtex somatossensorial primário, no giro do cingulado médio e no córtex visual, tendo sido apresentado aumento na ativação no gânglio basal anterior e no córtex anterior cingulado esquerdo.
As técnicas hipnóticas
As principais técnicas hipnóticas são caracterizadas por envolver a diminuição da percepção do mundo externo, a habilidade do cérebro em focar em um alvo e a reatividade à sugestão. Essas sugestões incluem o uso de palavras e sons para expressar o mundo interno do paciente, como dores e sensações, assim como transmissões não-linguísticas de informações para que se atinja o objetivo do alívio da dor. No caso da dor sentida por uma mulher durante o parto, as sugestões se concentrariam em fazer com que a mulher se sinta segura, confortável e relaxada, além de promover sensações de analgesia e entorpecência. Sendo assim, não necessariamente há o uso de objetos, como amplamente divulgado em filmes e desenhos animados, em que o hipnoterapeuta balança um relógio em frente ao paciente, colocando-o em total obediência e submissão ao profissional. Um simples diálogo é capaz de promover o efeito hipnótico, que, por sua vez, não submete o paciente à completa passividade – ele permanece consciente e pode sair do transe hipnótico a qualquer momento, sempre que desejar.
Além disso, a analgesia é apenas uma consequência possível da hipnose. Em muitos casos, o tratamento volta-se mais para o alívio da percepção do sofrimento causado pela dor e sua experiencia subjetiva. Dessa forma, há também o uso de técnicas hipnóticas mais centradas na participação ativa dos sujeitos, como as criadas por Milton Erickson (hipnose Ericksoniana), cuja abordagem favorece experiências e narrativas dos sujeitos, garantindo o protagonismo e o desenvolvimento de potencialidades dessas pessoas. Nessa perspectiva, destacam-se as técnicas de aceitação/rapport, conto de histórias e subversões da linguagem. Na aceitação/rapport, há um interesse legítimo sobre a pessoa e o processo de dor vivido pelo paciente, que resulta em uma conversação mais centrada na vida do que na dor, tirando o foco desta última, em uma relação mais horizontal com o paciente, tornando-o protagonista de sua própria experiência. Portanto, nesse método, o paciente percebe que pode influenciar ativamente suas experiências e modificar crenças que influenciam na dor. Já no conto de histórias, a participação do sujeito é mais sutil e espontânea: ele modifica sua experiência a partir de seu repertório e recursos subjetivos. Por fim, ao seguir os mesmos princípios, a subversão da linguagem, que rompe com as formas lineares e corriqueiras de pensamento e expressão, revelam uma linguagem mais inconsciente.
Experimentos comprovam
Mas, agora você deve estar se perguntando, toda essa teoria e “blábláblá” científicos realmente funcionam? Vejamos alguns experimentos que utilizaram a técnica de hipnose. Em estudo realizado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em pacientes oncológicos com câncer de próstata, foi possível perceber diversos benefícios propiciados pela técnica de hipnose na saúde dos 12 participantes do experimento. O objetivo consistia em verificar a eficácia da técnica de hipnose na promoção de ressignificação tanto da concepção de saúde, quanto do câncer de próstata; na autopercepção de melhora do quadro de saúde, no aumento da vontade de viver e de projetar o futuro. Os participantes foram submetidos a duas entrevistas semiestruturadas, visando conhecer as percepções de cada um sobre o câncer e intervir de forma específica durante a hipnose. Após isso, participaram de 5 sessões individuais de hipnoterapia, com duração de cerca de uma hora cada. O impacto da hipnose nos participantes ocorreu em todos os aspectos esperados, gerando a compreensão de que seus estados de saúde eram passageiros e de que não se resumiam à doença. Dessa forma, percebe-se um indicativo de potencialidade de melhora de saúde por meio do uso de hipnose no tratamento de pessoas com doenças autoimunes, principalmente devido a possibilidade de ressignificação de experiências e significados relacionados à doença.
Ainda não está convencido da eficácia da hipnose? Vejamos outro experimento: em estudo realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina com mulheres diagnosticadas com Síndrome de Fibromialgia, verificou-se impacto positivo do efeito da hipnose na percepção de dor. A partir da comparação da percepção de intensidade da dor, níveis de ansiedade e depressão, verificou-se que o grupo submetido à hipnose teve melhora nesses três aspectos, principalmente o primeiro, enquanto o outro grupo não apresentou melhora nem piora. Dessa forma, percebe-se que a hipnose tem potencial de impactar positivamente no tratamento de pacientes com dor crônica em seus aspectos físicos e emocionais.
Embora muito já se saiba sobre como se dão os efeitos neuropsicofisiológicos da hipnose e muitos pacientes a ela submetidos tenham comprovado seus efeitos, ainda resta a dúvida sobre por que esses efeitos ocorrem. A interferência da mente nas estruturas cerebrais e neuronais permanece um mistério para ciência e, aparentemente, essa questão não se resolverá em um estalar de dedos.
Referências
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Fonte da imagem da capa do post: newscientist.com.
Autoras
Manuela Marla Gomes da Costa. Graduanda em Psicologia e bacharel em Jornalismo, ambos pela UnB. Trabalha no Tribunal Superior Eleitoral como revisora de texto, mas garante que sua paixão é realmente a Psicologia. Mais do que isso, é louca por Psicanálise. Nutre enorme paixão por rock dos anos 90 e pop dos anos 80, assim como por viagens que geram boas histórias.
Lualã S. Carvalho é estudante de Psicologia na UnB. Adora seu curso e pretende trabalhar na área. Nas horas vagas faz aulas de balé e tenta ganhar uma graninha com fotografia. Também adora passar o tempo com seu novo filhote, um cãozinho chamado Caramelo.
Carla Emanuelle Silva de Carvalho, estudante de Psicologia na UnB. Trabalha com brechó e é uma garimpeira de primeira. Gosta de poesia, teatro e literatura. Amante da Psicologia, mas ainda perdida no mar de possibilidades que ela oferece.
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Costa, M. M. G., Carvalho, L. S., & Carvalho, C. E. S. (2020, 23 de março). A hipnose para o tratamento da dor [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2020/03/23/a-hipnose-para-o-tratamento-da-dor/