Quão forte precisa ser uma ilusão para afetar nossa mente? Atualmente vivemos a febre do cinema 3D e pagamos caro para termos momentos de ilusão. Mas será que são necessários recursos tão sofisticados para termos uma ilusão que afete nossa mente? E estas ilusões servem apenas para nosso lazer?
Não. Você alguma vez já ouviu falar de membro-fantasma?
É um fenômeno bastante peculiar, que é relatado desde o século XVI. Trata-se da percepção continuada que algumas pessoas têm de seus membros que foram amputados. Ou seja, estes membros não estão mais ligados ao corpo, mas mesmo assim parecem que ainda estão. Por exemplo, alguém pode perder uma perna e continuar a senti-la. Às vezes, além de ter a sensação da existência da perna, a pessoa ainda sente dores nesta perna que não existe mais!
Isto ocorre porque corpo é constantemente bombardeado por estimulações sensoriais que nos informam sobre as condições do ambiente externo e interno. Cada órgão dos nossos sentidos é preparado para receber, interpretar e transformar estas estimulações em impulsos nervosos. Estes chegarão até o cérebro e lá serão processados. A partir disto teremos consciência do que se passa no ambiente e poderemos agir de forma adequada.
Estas informações sensoriais do corpo são enviadas e processadas num mapa sensorial no nosso cérebro. Este é representado por um homúnculo sensorial. Quanto mais importante (ou utilizada) é uma parte do corpo, maior é sua representação no cérebro (ver Figura 2).
Para entender do que falamos, olhe para sua mão. Leia isto e tente fazer depois: feche os olhos e tente imaginar algum objeto muito pesado em cima dela. Este objeto faz pressão e o peso dele aumenta aos poucos. Em determinado momento você sentirá dor. Este processo se auto-alimenta, com a sensação de maior peso na sua mão causando o aumento da sensação de dor. Para acabar com isto bastará você tirar o peso de cima da sua mão.
Agora imagine que sua mão não está mais presente ao seu corpo. Como você controlaria isto?
Algumas pessoas perderam a mão em situações como esta, ou, por exemplo, com a mão fechada. A dor fantasma pode ocorrer por falha nesse sistema de retroalimentação. Imagine que, numa situação como a do exemplo acima, uma pessoa perca a mão. O cérebro enviaria sinais para a área amputada e não receberia feedback. Ou seja, a informação de quão forte é a sensação de peso na mão não chega ao cérebro. Dessa maneira, nosso sistema nervoso segue processando que há um objeto pesado sobre a mão e ao não receber informação se esse peso foi ou não tirado de lá, a dor continua. Enfim, é uma dor construída pela sua mente para interpretar esta situação.
Interessante nestes casos é que se antes da amputação o membro já estava paralisado, a pessoa sente-o paralisado após remoção. Se o membro se movimentava, sente-o movimentar. E se este membro estava doloroso por algum motivo, após a amputação ele sentirá ainda mais dor quando ele tiver a sensação fantasma deste membro se movendo.
Sentir dor é algo desagradável. Imagine-se sentindo dor constantemente em alguma parte de seu corpo. Agora pense que esta parte não existe mais, e mesmo assim ainda dói! Este problema foi encarado de diversas maneiras. Um cientista chamado Vilayanur S. Ramachandran tentou resolver este problema com um equipamento que cria um fenômeno ilusório bastante interessante. Trata-se de uma caixa de espelho (Mirror Box) em que há feedback visual para o movimento do membro ausente (ver figura abaixo), enganando-se assim o cérebro.
Ramachandran testou este equipamento em 10 pessoas que tiveram suas mãos amputadas. Cada paciente observou o reflexo de sua mão intacta no espelho e o equipamento causava a ilusão que o paciente tinha novamente as duas mãos. Foi-lhes pedido que realizassem movimentos com “as mãos” durante 15 minutos diários, por 3 semanas. 6 pacientes ao olharem o reflexo no espelho conseguiram sentir seu membro fantasma se movendo. Mas isto não ocorria com os olhos fechados, atestando que o efeito era devido ao equipamento. 4 pacientes ao abrirem suas mãos fantasmas sentiram alivio da dor (pode ter ocorrido pelos mecanismos explicados no exemplo do peso em cima da mão). Ainda, ao serem tocados na mão real, 3 pacientes sentiram o toque também na mão fantasma! Uma possível explicação é uma ativação em ambos os hemisférios, que é muito fraca nos não amputados, mas nos indivíduos com membros amputados ela se torna forte devido a ausência de estimulação constante.
Além do que foi relatado acima, Ramachandran também fez outros testes. Ele pedia que os pacientes fechassem seus olhos e dissessem onde ele os tocava com um cotonete. Quando tocado no lado do corpo sem o membro amputado, o paciente sentia o toque apenas a região tocada pelo cotonete. Porém, ao estimular a face do lado do membro amputado, alguns pacientes relataram que também seus membros fantasmas estavam sendo tocados.
Por que isso acontece?
Quando uma parte do corpo é perdida, ocorre uma invasão neuronal de áreas vizinhas no homúnculo sensorial (Figura 2). Como a região responsável pela face está bem próxima da região da mão, há uma reorganização (ou “remapeamento”) sensorial, com os neurônios que antes representavam a mão agora são recrutados pela face. Esta hipótese foi confirmada através de ressonância magnética. Foi observado que quando a face do lado amputado era estimulada ocorria uma ativação da área facial e também da área correspondente à mão. O mesmo não acontecia do outro lado do corpo.
Em suma, a pesquisa mostrou-se válida para tratar alguns pacientes e suas dores. Também lançou algumas bases para se entender de forma mais precisa este fenômeno intrigante. Ainda, mostrou que há plasticidade neuronal mesmo no cérebro adulto, hoje pode parecer banal falar isto, mas o artigo foi publicado originalmente em 1996.
A simplicidade da técnica mostra que também é possível nos iludir com coisas simples, e melhor, isto pode nos trazer benefícios.
Referências
Ramachandran, V. S. & Rogers-Ramachandran, D. Synaesthesia in Phantom Limbs Induced with Mirrors. Proceedings: Biological Sciences, 263(1369), 377–386, 1996. https://doi.org/10.1098/rspb.1996.0058
Ramachandran, V. S., & Hirstein, W. (1998). The perception of phantom limbs: The D. O. Hebb lecture. Brain: A Journal of Neurology, 121(9), 1603–1630. https://doi.org/10.1093/brain/121.9.1603
Demidoff, A. O., Pachecoa, F. G., Sholl-Franco, A. (2007). Membro-fantasma: O que os olhos não vêem, o cérebro sente. Ciências & Cognição, 12, 234–239. [PDF]
No site youtube é possível encontrar diversos vídeos com a demonstração da técnica com o Mirror Box.
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Fonte da imagem da capa do post: medicalxpress.com.
Sobre o autor
Bruno Marinho de Sousa é Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e trabalha com psicologia clínica e divulgação científica.
Este texto foi originalmente publicado no Blog Percepto em 26/01/2011.
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Sousa, B. M. (2019, 1 de dezembro). Membro fantasma [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2019/12/01/membro-fantasma/