Quando estudamos uma língua nova, temos contato com expressões e figuras de linguagem incomuns que inevitavelmente são comparadas às nossas falas quotidianas. Não raramente tentamos induzir ou pesquisar os processos de raciocínio que levaram os diferentes povos àqueles vocábulos. Nesses momentos, expandimos o nosso conhecimento sobre o mundo, sobre como pensamos e sobre como os falantes de outras línguas pensam. Nesse sentido, exemplos de diferenças linguísticas não faltam:
- Existem distintos significados para agradecer nas diferentes línguas: obrigado (estou obrigado a te retribuir); thank you (vem de think e originalmente significava que eu lembraria do feito); merci (tenha misericórdia de mim porque sou seu devedor); “arigatô” (isso é raro e precioso).
- Há diferenças entre as línguas sintéticas (alemão, grego e latim) e as analíticas (chinês, português, inglês);
- São encontradas mais de 5 formas verbais de demonstrar em palavras o afeto a alguém em japonês, em oposição às duas principais em português (gostar, amar) e inglês (like, love);
- Em francês, 70 é soixante-dix (sessenta-dez), 80 é quatre-vignts (quatro-vintes), 90 é quatre-vingt-dix (quatro-vinte-dez);
- Em grego, a duração instantânea ou contínua de uma ação tem mais importância do que o momento temporal em que aconteceu para a conjugação dos verbos. Há o indicativo presente normal e há o aoristo. Costumam usar o aoristo para o nosso passado, mas o sentido real é da ação instantânea ou muito rápida, e o indicativo presente usa-se para ações contínuas.
Essas amostras já são capazes de indicar que lógicas distintas subjazem à estrutura das línguas. Tais processos de lógica interna inclusive fazem com que a língua falada influencie na percepção da passagem do tempo. Ao redor do mundo, a passagem temporal sofre diferentes metáforas. Geralmente, o futuro é para frente e o passado para trás, mas, em mandarim, existe relação entre o futuro e o sentido “para cima” e entre o passado e “para baixo”. A língua aimará, por outro lado, liga o passado à frente, porque podemos enxergá-lo, e o futuro às costas, porque não o vemos.
A descoberta dessas diferenças nas línguas ganhou palco nos debates entre linguistas do século passado, provocados inicialmente pela possibilidade de um novo modelo linguístico para a percepção do tempo. Benjamin Lee Whorf, estadunidense, engenheiro de prevenção de incêndios e linguista nas horas vagas, ao estudar a língua do povo Hopi, população indígena norte-americana, afirmou seus membros não tinham noção da passagem do tempo, que seus verbos não flexionavam e que percebiam o tempo de forma cíclica, sempre se reiniciando em algum momento. A partir desses dados, elaborou a Teoria da Relatividade Linguística, junto com Edward Sapir, linguista alemão e seu mentor. Essa teoria sugere que a estrutura da linguagem modela a visão de mundo, a cognição e a percepção de seus falantes. Em relação aos Hopi, defendia que viam o tempo de forma cíclica porque seus verbos não flexionavam temporalmente, ou seja, a língua influenciava a cultura e a percepção. Isso levantou muita polêmica porque, até então, era comum que se pensasse nos conceitos abstratos como universais e indiferentes à língua. Entretanto, Ekkehart Malotki, linguista germano-americano, após estudar por alguns anos esse povo, elaborou estudos contradizendo Whrof, uma vez que os Hopi tinham todas as características linguísticas que Whrof dissera não terem.
O debate sobre a relatividade linguística não foi encerrado aí. Surgiram novas descobertas e dúvidas sobre a interação entre a língua falada e a percepção, incluindo a percepção da passagem do tempo. Nesse sentido, Emanuel Bylund, professor de psicolinguística da Universidade de Estocolmo, e Panos Athanasopoulos, professor de psicolinguística da Universidade Lancaster, realizaram um estudo com a seguinte dúvida: como os humanos constroem suas representações mentais sobre o tempo? A língua forneceria os subsídios para essa representação, tal como defendem os relativistas, ou a língua reflete uma estrutura geral de uma percepção que já existe nos seres humanos, como dizem os universalistas?
Para essa investigação, participaram falantes de sueco e espanhol. Em inglês e sueco, o tempo relaciona-se com “longo” e “curto”, já em espanhol e grego, dizemos “muito” e “pouco” tempo. Como isso afeta as formas de pensar sobre a duração temporal nos falantes das diferentes línguas? Para responder a essa pergunta, os pesquisadores propuseram três experimentos bem semelhantes entre si, nos quais os participantes realizavam duas tarefas principais:
- “Tarefa Espaço”: estimar o deslocamento espacial do líquido que preenchia o recipiente ou do crescimento da linha.
- “Tarefa Tempo”: estimar a duração temporal de uma animação com um recipiente sendo preenchido com líquido ou de uma animação com uma linha que crescia.
Em cada tarefa, os estímulos (líquido ou linha) eram apresentados várias vezes de forma aleatória e o nível do líquido ou o comprimento da linha não tinham relação com a duração temporal. O objetivo era saber até que ponto eles podiam desconsiderar as informações espaciais da “tarefa Espaço” quando realizavam a “tarefa Tempo”. A interferência era medida do seguinte modo: se o participante do experimento estimasse uma maior duração temporal quando houvesse maiores quantidades do estímulo, significava que ele estava sendo influenciado pela sua língua. A garrafa sendo preenchida faz uma metáfora com a expressão “muito tempo” e “pouco tempo” dos espanhóis, e os experimentadores pensavam que estes seriam influenciados nessa animação. Já “tempo longo” e “tempo curto” fazem metáfora com a linha crescente, que possivelmente afetaria a percepção de tempo dos suecos.
Experimento 1
Falantes de espanhol e falantes de sueco foram aleatoriamente designados a grupos em que tinham que realizar julgamentos sobre o líquido ou a linha. Então, eles estimavam várias vezes o deslocamento espacial de uma das animações (tarefa Tempo) e a duração temporal da mesma animação (tarefa Espaço). Antes da tarefa Tempo, era apresentada a palavra duración para os falantes de espanhol e tid (duração) para os falantes de sueco. Antes da tarefa Espaço, aos falantes de sueco era apresentada a palavra avstånd (distância) na animação da linha crescente ou mängd (quantidade) na animação do recipiente; de natureza igual, distancia (distância) ou cantidad (quantidade) eram apresentados aos falantes de espanhol.
Exemplo de como acontecia o experimento:
Um sueco poderia ser aleatoriamente escolhido para a animação do recipiente sendo preenchido e estimava várias vezes o deslocamento desse preenchimento (antecedido da palavra mängd) e a duração de seu preenchimento. Outro sueco poderia ser aleatoriamente escolhido para a animação da linha crescente e estimava o deslocamento do crescimento (antecedido da palavra avstånd) e seu tempo de crescimento. O mesmo acontecia com um participante espanhol, com exceção das palavras que eram apresentadas: cantidad e distancia.
O objetivo era medir o quanto a apresentação dessas palavras que funcionavam como pistas (quantidade e distância), bem como a metáfora da animação (recipiente sendo preenchido ou linha crescente) interfeririam na estimação da duração de tempo, que é interpretada como a percepção da passagem de tempo. Resultado: os suecos tiveram sua percepção de passagem de tempo influenciada mais pela condição da linha crescente que apresentava a palavra distância; e os espanhóis tiveram sua percepção de passagem de tempo mais influenciada na animação do recipiente sendo preenchido, que apresentava a palavra quantidade.
Experimento 2
O Experimento 2 foi realizado nos mesmos moldes do Experimento 1, porém, não eram apresentadas as palavras antes das tarefas. Os resultados mostraram que falantes da língua espanhola e sueca não apresentaram diferenças significativas da estimação do tempo.
Experimento 3
Os experimentos 1 e 2 forneceram evidências de que a cognição temporal é influenciada pelo contexto ambiental e que a linguagem pode interferir nesse processo. O Experimento 3 também teve por objetivo investigar essa relação, mas utilizou uma amostra de falantes bilingues de sueco e espanhol. Os participantes foram aleatoriamente designado à condição em que realizavam o julgamento da linha ou à condição do julgamento do recipiente. Contudo eles fizeram a tarefa duas vezes, sendo que em uma as palavras (pistas) apresentadas estava em espanhol e na outra vez, em sueco. Não foi realizada a tarefa Espaço, somente a tarefa Tempo. Houve uma interferência significativa na estimação do tempo na condição do recipiente na versão espanhola, e uma interferência significativa na estimação do tempo na condição da linha crescente na versão sueca. Isto é, os participantes bilíngues revelaram que possuem comportamento adaptável e induzido pelo contexto.
O que esse estudo nos mostra?
Esse estudo demonstra uma interferência específica da língua na percepção da passagem do tempo, trazendo um avanço importante aos teóricos da relatividade linguística. Entretanto, contrário a essa mesma teoria, a diferença na percepção do tempo sumiu sem as pistas das palavras, havendo até mesmo uma maior interferência na condição espacial (animação das linhas) em ambos os grupos de participantes no Experimento 2, embora não significativa, o que significa que mais pesquisas devem ser realizadas.
O ponto alto desse estudo, além da influência da linguagem na percepção, é que a cognição humana é adaptativa, versátil e consegue recrutar diferentes fontes de conhecimento quando induzida pela linguagem e por diferentes contextos. A língua é, portanto, cada vez mais apresentada como uma fonte essencial de informações para processar a experiência, e esta pode se ampliar quanto mais os indivíduos se abrem a novas informações linguísticas e, consequentemente, culturais.
Referências
Sampaio, T. O. M. (2019, 21 de abril). A língua alienígena de ‘A Chegada’ pode nos dar o superpoder de prever o futuro? #Linguística. https://www.blogs.unicamp.br/linguistica/2019/04/21/a-lingua-alienigena-de-a-chegada-pode-nos-dar-o-superpoder-de-prever-o-futuro/.
Popova, M. (2013, 25 de julho). How we got “please” and “thank you”. The Marginalian. https://www.themarginalian.org/2013/07/25/origin-of-please-and-thank-you/.
Bylund, E., & Athanasopoulos, P. (2017). The Whorfian time warp: Representing duration through the language hourglass. Journal of Experimental Psychology: General, 146(7), 911–916. https://doi.org/10.1037/xge0000314
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Sobre a autora
Ingrid L. F. da Rocha. Graduanda em Psicologia na UnB, interessada em seus estudos transculturais e teorias da personalidade. Fora da área, se interessa por Literatura, Línguas e Filosofia. Também sofre inclinações a coisas arcaicas, fofas, engraçadas ou que pareçam infrutíferas.
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da Rocha, I. L. F. (2023, 28 de janeiro).A influência da linguagem na percepção da passagem do tempo. Eu Percebo. https://stronga-influencia-da-linguagem-na-percepcao-da-passagem-do-tempo-strong