Seja seduzindo Adão e Eva a comer o fruto proibido nas religiões judaico-cristãs, matando o grande deus Thor na mitologia nórdica ou como totem de “Você-Sabe-Quem” nos livros de J. K. Rowling, serpentes são os animais mais presentes em mitos, religiões e histórias ao redor do mundo (Figura 1).
O questionamento de por que damos tanta importância e atenção às serpentes ao longo da nossa história motivou a antropóloga Lynne A. Isbell, professora da Universidade da Califórnia em Davis, a investigar essa relação. Ao reconstruir a história evolutiva dos primatas, ela percebeu uma consistência entre a complexidade do sistema visual e a interação evolutiva que o grupo teve com serpentes constritoras e peçonhentas.
Evolutivamente falando, é extremamente importante que uma ameaça seja percebida antes que seja tarde demais. Existe um conjunto de estruturas cerebrais, chamados por Arne Öhman e Susan Mineka de “módulo do medo mamífero” [1], que contribui na identificação inconsciente de estímulos ameaçadores. São pressões advindas dessas ameaças que selecionam adaptações que favorecem a sobrevivência do indivíduo. É aí que as serpentes entram! De acordo com os achados de Isbell, serpentes constritoras foram um dos pontapés iniciais para a seleção natural desse módulo do medo nos primeiros mamíferos, mas a corrida armamentista evolutiva de predador-presa, em primatas, continuou com as serpentes peçonhentas.
Uma divisão informal do grupo de primatas inclui os do Velho Mundo (os catarrinos, “apes” e humanos), os do Novo Mundo (das Américas, chamados de platirrinos) e os prossímios, de Madagascar (Figura 2). Os prossímios possuem um melhor olfato que os demais primatas, mas seus cérebros e visão são menos desenvolvidos. Os do Velho Mundo são basicamente o contrário, possuem uma visão excelente — são, inclusive, tricromatas — e cérebros bem avantajados; os do Novo Mundo, por sua vez, possuem um sistema visual “intermediário” entre os outros dois grupos. Vou te contar um fato interessante: um desses grupos nunca conviveu evolutivamente com serpentes peçonhentas; outro, evoluiu junto delas desde o começo; o terceiro teve algo entre 12 e 32 milhões de anos de evolução antes de esbarrar com serpentes peçonhentas. Adivinha qual é qual? Isso mesmo! Prossímios, primatas de Velho Mundo e de Novo Mundo, respectivamente. Temos aqui ou uma grande coincidência, ou pistas bastante suspeitas do papel das serpentes na nossa evolução.
Alguns animais desenvolveram uma resistência fisiológica às suas peçonhas, outros desenvolveram melhor o olfato para evitá-las… Mas os primatas desenvolveram, gradualmente, a estereopsia (visão tridimensional) e uma melhor visão para movimento, cores e detalhes (Figura 3). Já que essas mudanças custam bastante energia, elas só foram possíveis graças à dieta rica em açúcar dos mamíferos ancestrais dos primatas. O que faltava era um empurrãozinho evolutivo: Isbell propõe que a especialização visual e a expansão cerebral em primatas e, consequentemente, em humanos, tenham sido decorrentes da habilidade evolucionária de detectar serpentes — ideia conhecida como a Teoria de Detecção de Serpentes.
De fato, nós, primatas, temos dois tipos de processamento visual distintos. Um deles capta os detalhes de forma consciente, enquanto o outro é mais rápido e automático, o que favorece a detecção pré-consciente de predadores, por exemplo. Afinal, às vezes se desviar de uma ameaça mesmo sem entender qual ela é pode valer sua vida. E é por isso que você se desvia tão agilmente de galhos e cordas ao fazer uma trilha!
Mas temos evidências dessa Teoria de Detecção de Serpentes?
Sim! Por exemplo, percebemos linhas curvilíneas, semelhantes a serpentes, mais rapidamente que retilíneas, mesmo na ausência de qualquer informação relevante para a ameaça [2]. Além disso, também percebemos posturas de ataque antes de poses não-ameaçadoras [3]. Em relação à nossa via envolvida no reconhecimento rápido de estímulos emocionais ameaçadores, um estudo mostrou que lesões em uma das estruturas prejudicou o reconhecimento da ameaça de serpente em macacos, que ignoraram completamente sua presença [4]. Recentemente, foi constatado que até mesmo crianças de 7 a 10 meses apresentam respostas neurais de maior amplitude quando apresentadas a uma serpente, mesmo sem exposição ou conhecimento prévio [5]. Esses dados sugerem que, de fato, temos mecanismos especializados para a detecção de serpentes (Figura 4).
A Teoria da Detecção de Serpentes não explica, por si só, toda a história da nossa expansão e especialização cerebral, mas é uma parte importante que reúne fatos antropológicos, ecológicos, biogeográficos, psicológicos e neurobiológicos. E, mais importante, segundo a própria Isbell, é que “ao reconhecermos que nossa visão e nosso comportamento foram moldados ao longo de milhões de anos de interação com outro tipo de animal, nós admitimos nossa relação próxima com a natureza”.
Referências
[1] Öhman, A., & Mineka, S. (2001). Fears, phobias, and preparedness: Toward an evolved module of fear and fear learning. Psychological Review, 108(3), 483–522. https://doi.org/10.1037/0033-295X.108.3.483
[2] LoBue, V. (2014). Deconstructing the snake: The relative roles of perception, cognition, and emotion on threat detection. Emotion, 14(4), 701-711. https://doi.org/10.1037/a0035898
[3] Masataka, N., Hayakawa, S., & Kawai, N. (2010). Human young children as well as adults demonstrate ‘superior’rapid snake detection when typical striking posture is displayed by the snake. PloS one, 5(11), e15122. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0015122.
[4] Maior, R. S., Hori, E., Barros, M., Teixeira, D. S., Tavares, M. C. H., Ono, T., … & Tomaz, C. (2011). Superior colliculus lesions impair threat responsiveness in infant capuchin monkeys. Neuroscience Letters, 504(3), 257-260. https://doi.org/10.1016/j.neulet.2011.09.042.
[5] Bertels, J., Bourguignon, M., De Heering, A., Chetail, F., De Tiège, X., Cleeremans, A., & Destrebecqz, A. (2020). Snakes elicit specific neural responses in the human infant brain. Scientific Reports, 10(1), 1-12. https://doi.org/10.1038/s41598-020-63619-y.
[6] Hayakawa, S., Kawai, N., & Masataka, N. (2011). The influence of color on snake detection in visual search in human children. Scientific Reports, 1, 80. https://doi.org/10.1038/srep00080.
Para saber mais
Isbell, L. A. (2006). Snakes as agents of evolutionary change in primate brains.Journal of Human Evolution, 51(1), 1–35. https://doi.org/10.1016/j.jhevol.2005.12.012.
Kawai, N. (2019). The fear of snakes: Evolutionary and psychobiological perspectives on our innate fear. Springer Nature. https://doi.org/10.1007/978-981-13-7530-9
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Capa do post: Chironius flavolineatus (Foto de Gabriela Carvalho).
Sobre a autora
Mariana Bicalho M. Correia. Bióloga e mestranda em Neurociências na UnB. Tem experiência nas áreas de Neurofisiologia, Psicofarmacologia e Comportamento Animal, atuando principalmente com modelos primatas de transtornos psiquiátricos. Ama estar ao ar livre, assistir filmes e ler. Mas a verdade é que gosta mesmo de viajar! É beatlemaníaca e apaixonada por macacos.
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Correia, M. B. M. (2021, 29 de dezembro). Tinha uma serpente no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma serpente: Sobre a Teoria de Detecção de Serpentes. Eu Percebo. https://eupercebo.unb.br/2021/12/30/tinha-uma-serpente-no-meio-do-caminho-no-meio-do-caminho-tinha-uma-serpente-sobre-a-teoria-de-deteccao-de-serpentes/