No dia 12 de fevereiro de 2020 foi lançada a Agência Bori com o intuito de fazer a ponte entre jornalistas e o conhecimento científico brasileiro. Duas jornalistas capitaneiam esta empreitada, Ana Paula Morales e Sabine Righetti. A notícia de um coletivo de jornalistas e pesquisadores divulgando ciência brasileira por si só já é motivo de alegria, ainda mais em tempos de descrédito do conhecimento científico e das universidades. Para muitos pesquisadores, principalmente do campo da Psicologia, a notícia também foi motivo de alegria por homenagear a pesquisadora Carolina Martuscelli Bori (1924 – 2004). Mas afinal, quem foi Carolina Bori? Existem algumas referências que nos contam essa história¹ e o que ofereço aqui é um relato que parte de um ponto de vista bem pessoal.
Acontece que me formei psicólogo e por isso o nome de Carolina Bori vez ou outra circulava nos corredores da universidade e em sala de aula. Não é por menos, o início do engajamento dela na Psicologia data de antes da regulamentação da profissão no Brasil. Carolina Bori se formou em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1947 e no ano seguinte foi contratada pela universidade para exercer o cargo de professora assistente de Psicologia. Após um mestrado no exterior, concluiu seu doutorado também na USP em 1954. A regulamentação dos cursos e da profissão de psicólogo ocorreu somente em agosto de 1962, e dois meses depois desta data e a pedido do Ministério da Educação e Cultura, Carolina Bori integrava comissão propositiva sobre os pedidos de registro de psicólogo profissional. Ela foi uma figura de liderança muito importante no movimento que defendeu a regulamentação da profissão no Brasil e para a criação do currículo mínimo para o ensino de graduação em Psicologia. Algo muito ilustrativo deste posicionamento é o número de registro 001 dado a ela quando da criação do conselho de classe profissional da Psicologia. Posteriormente, atuou na comissão que elaborou as Diretrizes Curriculares para os cursos de Psicologia.
O nome de Caroline Bori passou a soar ainda mais familiar nos meus anos de pós-graduação na USP e hoje, como professor da Universidade de Brasília (UnB). Carolina Bori trabalhou nestas duas instituições. Vez ou outra escuto anedotas sobre ela ou a vejo em murais de fotos em gabinetes de colegas que estão há mais tempo no departamento. Acontece que eu sou um professor jovem, conheço as histórias apenas por relatos orais e registros escritos.
Carolina Bori fez sua carreira na USP, onde foi chefe de departamento, presidente da comissão de pós-graduação, coordenadora do projeto Estação Ciência e professora emérita do Instituto de Psicologia. Mas também atuou em outras instituições: prestou auxílio ao Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais no Rio de Janeiro e na estruturação dos cursos de mestrado em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos e em Análise do Comportamento na Universidade Federal do Pará.
Na UnB, foi responsável por liderar o time que fundou o curso de Psicologia em 1963. Ela foi a primeira chefe do então chamado Departamento de Psicologia. Para além da Psicologia, algo que marcou a carreira da docente foi sua capacidade de realizar interlocuções com distintas áreas do conhecimento e advogar de modo amplo pela ciência brasileira. Como exemplo, nos anos de Planalto Central, Carolina Bori integrou o time liderado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira para estruturar os cursos de formação básica na UnB e foi membro do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília. Carolina Bori fazia parte daqueles que chegaram a Brasília nas décadas de 1950 e 1960 movidos por um novo projeto de país. A UnB refletia este projeto utópico, e Carolina Bori participou da tarefa de pensar uma universidade sem cátedras, inovadora e singular. Como bem lembrou a professora Mariza Borges (UnB), embora o projeto de país e de universidade não tenha se concretizado com a chegada de tempos difíceis, possivelmente, se não fosse o empenho dos fundadores, a UnB não saberia reagir à brutalidade do regime militar. No ano de 2000, Carolina Bori recebeu o título de Doutor Honoris causa pela UnB (título também concedido pela Federal de São Carlos em 2003).
Assim como eu, Carolina Bori era uma psicóloga experimental, algo que não é tão comum de se escutar na fila da padaria quando te perguntam o que você faz da vida. E o fato de eu ser um psicólogo experimental em parte se deve a ela. Eu venho de uma linha genealógica de pesquisadores que teve como origem a formação dada por Carolina Bori. Mais especificamente, eu sou a quarta geração de pesquisadores depois dela. Isso quer dizer que a Dra. Carolina Bori orientou o orientador do orientador do meu orientador de doutorado (fonte: Plataforma Acácia). Isso nos mostra que ela influenciou gerações de pesquisadores no Brasil, sendo fundamental para o estabelecimento de uma psicologia científica no país e uma das pioneiras na investigação experimental nessa área do conhecimento. Carolina Bori fez o serviço completo: valorizava os laboratórios experimentais e a ciência básica, orientou mais de cem teses e dissertações² (entendia à época a formação de pesquisadores como urgente), viabilizava junto a administração a importação de equipamentos, realizava congressos, fomentava a vinda de pesquisadores estrangeiros e traduziu livros para formação de alunos em uma época de escassez de material em português.
A vocação experimental não afastou Carolina Bori das grandes questões políticas e sociais. Como bem lembra nota publicada pela revista Psicologia: Ciência e Profissão de 1998, ela se engajou em pautas relacionadas à extinção do AI-5, o direito à liberdade de expressão e reunião e a defesa dos direitos humanos em geral. Carolina Bori pensava o desenvolvimento científico no Brasil sempre de um ponto de vista macro e era atuante em sociedades científicas que lutavam a favor de políticas públicas educacionais e científicas. Ela foi protagonista na fundação da Sociedade Brasileira de Psicologia e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. Entre 1986 e 1989, Carolina Bori foi a primeira presidente mulher da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), tendo se destacado em medidas para educação e divulgação científica para um público amplo³. Após seu tempo de mandato, Dra. Bori sempre esteve próxima à diretoria da SBPC e foi eleita presidente de honra da entidade. Adicione na conta os vários cargos de representação de Carolina Bori em instâncias externas, como o Ministério da Educação e o CNPq.
A professora Carolina Bori faleceu em outubro de 2004 com 80 anos. Ela era conhecida pela sua ponderação, firmeza, carisma, vitalidade e personalidade jovial. Tenho certeza de que deixei escapar muitas informações relevantes aqui, algumas por falta de conhecimento mesmo e outras por uma questão de economia textual. Não era meu intuito ser extensivo (a vida de Dona Carolina daria uma coletânea de livros ou um seriado de TV).
É muito interessante observarmos como pessoas que não conviveram diretamente conosco e que nem sequer compartilharam a mesma janela temporal conseguem nos influenciar na esfera privada de algum modo. Isso é comum com astros do rock: Jim Morrison, John Lennon, Elvis… e nem tão comum assim com cientistas. Mas esta é a relação que eu guardo com a professora Carolina Bori.
Em resumo, e respondendo à pergunta do título deste texto: Carolina Bori foi mulher, psicóloga e cientista muito F*DA! Ela ainda vive na lembrança daqueles que tiveram a oportunidade de conhecê-la, e seu legado reverbera naqueles que não tiveram essa chance. Hoje, mais do que nunca, que ela continue nos inspirando a construir uma ciência brasileira emancipadora, autônoma e integradora.
Referências
(1998). Carolina Bori. Psicologia: Ciência e Profissão, 18(3), 65. https://doi.org/10.1590/S1414-98931998000300010
Borges, M. M. (1998). Carolina Martuscelli Bori e a UnB. Psicologia USP, 9(1), 101-104. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000100015
Feitosa, M. A. G. (2007). Doutora Honoris Causa Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23(spe), 25-28. https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000500005
Malavasi, A. (1998). Depoimento sobre a Professora Carolina Martuscelli Bori. Psicologia USP, 9(1), 201-203. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000100042
Matos, M. A. (1998). Carolina Bori: A Psicologia brasileira como missão. Psicologia USP, 9(1), 67-70. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000100009
Soares, A. R. (2010). A Psicologia no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 30(spe), 8-41. https://doi.org/10.1590/S1414-98932010000500002
Tomanari, G. Y. (2005). Pioneirismo na ciência e na psicologia: Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Boletim de Psicologia, 55(123), 241-246. [PDF]
Notas
¹ Uma fonte rica sobre a vida e as contribuições da professora Carolina Bori está documentada no Volume 9(1) da revista Psicologia USP, elaborado em sua homenagem.
² O número de orientações não é refletido em seu currículo pois, segundo o professor G. Tomanari, a professora Carolina Bori não aceitava ser coautora de trabalhos de dissertações e teses. Ela argumentava que esses trabalhos eram dos alunos.
³ Outras mulheres continuam esse trabalho atualmente. Além da Agência Bori, que foi o ponto de partida da minha motivação para escrever este texto, hoje vemos importantes iniciativas de mulheres voltadas a divulgação científica. Os projetos Mulheres na Ciência e Cientistas Feministas são ótimos exemplos!
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Fonte da imagem da capa do post: r2012.sbponline.org.br.
Sobre o autor
Rui de Moraes Jr. é Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos da Universidade de Brasília.
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de Moraes, R., Jr. (2020, 1 de março). Quem foi Carolina Bori? [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2020/03/01/quem-foi-carolina-bori/