Recentemente, as redes sociais foram invadidas por mais uma daquelas polêmicas virais sobre imagens que deixam dúvidas, tornam-se um mistério e geram muitas teorias. Dessa vez, a discussão foi em torno da imagem na Figura 1 (abaixo). Seria uma porta ou uma praia? Vale observar que a imagem é a mesma, em diferentes orientações (a e b).
Gostamos de pensar que o mundo ao nosso redor é estável e que aquilo que vemos é exatamente o que está lá. No entanto, ilusões e figuras ambíguas demonstram que não é bem assim. Ao contrário, a informação transmitida por nossos olhos é restrita e carece de um sistema perceptual complexo para que seja interpretada [1]. O que percebemos é um produto da interação entre nossa experiência e a informação recebida.
Figuras ambíguas são estímulos visuais que podem ser interpretados pelo cérebro de duas ou mais formas diferentes sem que haja qualquer intervenção na imagem inicial. O que possibilita a percepção de figuras diferentes na mesma imagem é o fato de essas interpretações serem mutuamente excludentes, ou seja, há uma alternância entre uma e outra figura, realizada por nosso cérebro. A ambiguidade pode residir, por exemplo, na perspectiva, figura e fundo, ou conteúdo das imagens, conforme podemos verificar nas figuras clássicas a seguir:
Perspectiva (Figura 2) – Efeito visual de tridimensionalidade, quando as formas são representadas sobre uma superfície plana, levando a duas interpretações igualmente válidas.
Figura e fundo (Figura 3) – Tendência a perceber a figura como o elemento em foco, mais saliente ou “principal”, enquanto o fundo seria a base por trás da figura. Quando um elemento é percebido como figura, o outro é fundo, e vice-versa.
Conteúdo (Figura 4) – Associação de um conceito a um elemento gráfico; unidade de sentido, ou aquilo que a imagem representa.
Embora o interesse pelo seu estudo já dure mais de um século, os mecanismos subjacentes à percepção dessas figuras permanecem pouco compreendidos. A questão que segue sem resposta é como o observador decide pela resposta escolhida [2] . As primeiras tentativas de explicação do fenômeno [3] sugeriam que a fadiga neural que resulta da inspeção prolongada de uma das alternativas levaria ao surgimento da outra, ou seja, observar um mesmo estímulo por um tempo nos levaria a uma espécie de “cansaço” que faria com que deixássemos de ver aquele estímulo. Chamamos isso de adaptação neural – interrupção da resposta a estímulos inalterados.
A favor dessa hipótese, estudos sugerem que os perfis de resposta de canais neurais são temporariamente alterados por sua estimulação contínua (olhar demoradamente para uma imagem), o que levaria à fadiga, reduzindo a sensibilidade e alterando a resposta até que haja uma recuperação desse estado adaptado [4]. Na adaptação neural, ocorre uma saturação dos canais neurais subjacentes à percepção de uma opção da figura, levando à dominância da outra opção por meio da alternância [5]. Outros estudiosos [6] acrescentaram, ainda, que a alternância entre figuras é resultado de processos cerebrais automáticos, acionados pelo estímulo e independentes de processos cognitivos do observador.
Esse modelo, no entanto, tem sofrido críticas de pesquisadores que privilegiam os processos cognitivos envolvidos, como aprendizagem, tomada de decisão, familiaridade, conhecimento, expectativas, entre outros [2]. Em um estudo de 2014, Kosegarten e Kose [4] investigaram se o conhecimento prévio da existência de uma ambiguidade, com a consequente intenção de identificar uma reversão da imagem, seria necessário para que as alternâncias ocorressem. Seus resultados apontaram que, embora o conhecimento prévio aumente a probabilidade de se identificar as diferentes figuras, ele não é necessário e nem suficiente para que isso aconteça, uma vez que participantes do grupo informado sobre a ambiguidade deixaram de identificar a alternância, e participantes do grupo não informado conseguiram identificar algumas ambiguidades. Os autores concluem que qualquer explicação sobre o mecanismo de percepção de figuras ambíguas deverá considerar a interação entre a percepção visual (baseada no estímulo) e a cognição superior (integração da informação, formando um sentido).
Isso significa que tanto os processos bottom-up (do processamento do input visual para a cognição) quanto os top-down (a cognição influenciando o processamento do input visual) estariam envolvidos na explicação deste fenômeno, sendo este o caminho indicado por um número crescente de estudos recentes. A principal diferença entre essas abordagens reside na questão da localização desse processo – se em unidades de processamento visual inferiores (estruturas dos olhos e vias de transmissão) ou de cognição superior (córtex cerebral – integração). Alguns autores [1] propõem uma teoria integrativa ao sugerirem que, provavelmente, trata-se de um processo que envolve quase todo o córtex, não havendo uma área única no cérebro responsável pelas alternâncias perceptuais.
Moreno-Sanchez, Aznar-Casanova e Torro-Alves [2] resumem a questão com base em estudos anteriores que identificaram diversos fatores que interferem na escolha do observador quando se trata de figuras ambíguas, que podem ser organizados em três categorias: (i) fatores relacionados ao próprio observador (como a experiência prévia e a habilidade de discriminação de propriedades); (ii) fatores relacionados ao estímulo (como a orientação da figura e as condições de observação); e (iii) fatores relacionados ao contexto ou às expectativas do observador (como a influência das instruções recebidas ou perceber o coelho ao invés do pato no período da Páscoa, por exemplo). Compreender o quanto cada fator interfere na resposta foi o foco de interesse de seu estudo de 2016, que os levou à conclusão que, para solucionar o problema de uma figura ambígua, o cérebro precisa decifrar uma mensagem implícita e que, para tal, deve integrar informações provenientes de diferentes fontes, como o estímulo, o observador e o contexto, entre outras. Ou seja, vemos com nosso cérebro tanto quanto com nossos olhos.
Agora, faça o seu teste: o que você vê?
Referências
[1] Kornmeier, J., & Bach, M. (2012). Ambiguous Figures – What Happens in the Brain When Perception Changes but not the Stimulus. Frontiers In Human Neuroscience, 6. https://doi.org/10.3389/fnhum.2012.00051
[2] Moreno-Sanchez, M., Aznar-Casanova, J. & Torro-Alves, N. (2016). How Does the Mind Handle Uncertainty in Ambiguous Figures? Psychology Research, 6(1), 1-13. https://doi.org/10.17265/2159-5542/2016.01.001
[3] Köhler, W. (1940). Dynamics in Pshychology. New York: Liveright.
[4] Kosegarten, J. & Kose, G. (2014). Seeing Reversals in Ambiguous Images: To Know or Not to Know? Perceptual and Motor Skills, 119 (1), 228-236. https://doi.org/10.2466/24.27.PMS.119c15z9
[5] Intaitė, M., Noreika, V., Soliunas, A., & Falter, C. (2013). Interaction of bottom-up and top-down processes in the perception of ambiguous figures. Vision Research, 89, 24-31. https://doi.org/10.1016/j.visres.2013.06.011
[6] Long, G. M. & Toppino, T. C. (2004). Enduring interest in perceptual ambiguity: Alternating views of reversible figures. Psychological Bulletin, 130(5), 748-768. https://doi.org/10.1037/0033-2909.130.5.748
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Sobre a autora
Inaiara Golob é psicóloga, especializada em Terapia Cognitiva e Neuropsicologia, mestranda em Ciência do Comportamento pela Universidade de Brasília, carioca da gema e apaixonada por gente.
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Golob, I. S. (2019, 16 de novembro). Figuras ambíguas e neurociências: Por que nossa percepção muda diante de um mesmo estímulo? [Blog]. Recuperado de https://eupercebo.unb.br/2019/11/16/figuras-ambiguas-e-neurociencias-por-que-nossa-percepcao-muda-diante-de-um-mesmo-estimulo/
Legal
Fantástico ! Adorei. Parabéns à autora INAIARA GOLOB !
Boa Tarde Inaiara.
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E muito interessante, fortalece o cérebro 🧠
Amei, super explicativo !